terça-feira, 4 de março de 2014

Elegias, de Propércio


                                  II, XXIII

Cui fugienda fuit indocti semita vulgi,
    ipsa petita lacu nunc mihi dulcis aqua est.
ingenuus quisquam alterius dat munera servo,
    ut promissa suae verba ferat dominae?
et quaerit totiens 'Quaenam nunc porticus illam
    integit?' et 'Campo quomovet illa pedes?'
deinde, ubi pertuleris, quos dicit fama labores
    Herculis, ut scribat 'Muneris ecquid habes?'
cernere uti possis vultum custodis amari,
    captus et immunda saepe latere casa?
quam care semel in toto nox vertitur anno!
    a pereant, si quos ianua clausa iuvat!
contra, reiecto quae libera vadit amictu,
    custodum et nullo saepta timore, placet?
cui saepe immundo Sacra conteritur Via socco,
    nec sinit esse moram, si quis adire velit;
differet haec numquam, nec poscet garrula, quod
    astrictus ploret saepe dedisse pater,
nec dicet ' Timeo, propera iam surgere, quaeso:
    infelix, hodie vir mihi rure venit.'
et quas Euphrates et quas mihi misit Orontes,
    me iuerint: nolim furta pudica tori;
libertas quoniam nulli iam restat amanti:
    nullus liber erit, si quis amare volet.

Eu, que antes evitava da turba ignara as sendas percorrer,
as águas acho doces, que agora em lagos busco. (*)
Então um homem livre presentes há-de dar ao servo doutrem,
a fim de que transmita à dona seus recados?
E sempre há-de inquirir: “À sombra de que pórtico se encontra?” 
“Qual é do Campo Márcio a parte que demanda?”
Enfim, após passares por quantas penas de Hércules se contam, 
consegues que te escreva. Que ganhas tu com isso?
É grande recompensa o gesto ver azedo do porteiro
e ter de achar refúgio, retido em canto imundo? (**)
Ah! Como me sai caro apenas uma noite em todo um ano!
Ao demo todo o homem que portas quer cerradas.
Por mim, mais aprecio muiher que, com a túnica traçada,
liberta vai de guardas, sem medos que a limitem.
Nos pés sujas tamancas, percorre sem cessar a Via Sacra;
se alguém quer abordá-la, demoras não consente;
não guarda pra amanhã, nem faz grandes conversas pra que pagues
um preço que exaspere um pai muito avarento (***)
E nunca te dirá: “Levanta-te depressa, tenho medo;
Perdida estou! Do campo vem hoje meu marido”.
Aquelas me convêm, que o Eufrates e o Orontes aqui pôs;
amores recatados, no leito não os quero,
que deixam os amantes de toda a liberdade espoliados.
Desista de ser livre quem quer ser amador.


(*) Linguagem metafórica. Quer o poeta dizer que, gostando outrora de ter uma amante só dele, agora prefere as mulheres públicas.
(**) Propércio recorda os tempos em quo a chegada súbita do marido o obrigava a econder-se em lugares menos... higiénicos.
(***) O pai avarento fica etarrecido com as depesas sexuais do filho.



                                               IV, VIII
 disce, quid Esquilias hac nocte fugarit aquosas,
    cum uicina nouis turba cucurrit agris.
Lanuuium annosi uetus est tutela draconis,
……………………………………………………………..
huc mea detonsis auecta est Cynthia mannis:
    causa fuit Iuno, sed mage causa Venus.
Appia, dic quaeso, quantum te teste triumphum
    egerit effusis per tua saxa rotis!
[turpis in arcana sonuit cum rixa taberna;
    si sine me, famae non sine labe meae.]
spectaclum ipsa sedens primo temone pependit,
    ausa per impuros frena mouere locos.
serica nam taceo uulsi carpenta nepotis
    atque armillatos colla Molossa canis,
qui dabit immundae uenalia fata saginae,
    uincet ubi erasas barba pudenda genas.
cum fieret nostro totiens iniuria lecto,
    mutato uolui castra mouere toro.
Phyllis Auentinae quaedam est uicina Dianae,
    sobria grata parum: cum bibit, omne decet.
altera Tarpeios est inter Teia lucos,
    candida, sed potae non satis unus erit.
his ego constitui noctem lenire uocatis,
    et Venere ignota furta nouare mea.
unus erat tribus in secreta lectulus herba.
    quaeris concubitus? inter utramque fui.
Lygdamus ad cyathos, uitrique aestiua supellex
    et Methymnaei Graeca saliua meri.
Nile, tuus tibicen erat, crotalistria phillis,
    haec facilis spargi munda sine arte rosa,
nanus et ipse suos breuiter concretus in artus
    iactabat truncas ad caua buxa manus.
sed neque suppletis constabat flamma lucernis,
    reccidit inque suos mensa supina pedes.
me quoque per talos Venerem quaerente secundos
    semper damnosi subsiluere canes.
cantabant surdo, nudabant pectora caeco:
    Lanuuii ad portas, ei mihi, solus eram;
cum subito rauci sonuerunt cardine postes,
    et leuia ad primos murmura facta Laris.
nec mora, cum totas resupinat Cynthia ualuas,
    non operosa comis, sed furibunda decens.
pocula mi digitos inter cecidere remissos,
    palluerantque ipso labra soluta mero.
fulminat illa oculis et quantum femina saeuit,
    spectaclum capta nec minus urbe fuit.
Phyllidos iratos in uultum conicit unguis:
    territa uicinas Teia clamat aquas.
lumina sopitos turbant elata Quiritis,
    omnis et insana semita nocte sonat.
illas direptisque comis tunicisque solutis
    excipit obscurae prima taberna uiae.
Cynthia gaudet in exuuiis uictrixque recurrit
    et mea peruersa sauciat ora manu,
imponitque notam collo morsuque cruentat,
    praecipueque oculos, qui meruere, ferit.
atque ubi iam nostris lassauit bracchia plagis,
    Lygdamus ad plutei fulcra sinistra latens
eruitur, geniumque meum protractus adorat.
    Lygdame,nil potui: tecum ego captus eram.
supplicibus palmis tum demum ad foedera ueni,
    cum uix tangendos praebuit illa pedes,
atque ait "admissae si uis me ignoscere culpae,
    accipe, quae nostrae formula legis erit.
tu neque Pompeia spatiabere cultus in umbra,
    nec cum lasciuum sternet harena Forum.
colla caue inflectas ad summum obliqua theatrum,
    aut lectica tuae se det aperta morae.
Lygdamus in primis, omnis mihi causa querelae,
    ueneat et pedibus uincula bina trahat."
indixit leges: respondi ego "legibus utar".
    riserat imperio facta superba dato.
dein, quemcumque locum externae tetigere puellae,
    suffiit, at pura limina tergit aqua,
imperat et totas iterum mutare lucernas,
    terque meum tetigit sulpuris igne caput.
atque ita mutato per singula pallia lecto
    respondi, et toto soluimus arma toro.

Eis o que esta noite pôs em alvoroço o bairro de Esquílias, de águas abundante,
e fez a vizinhança acorrer em massa aos novos jardins.
O velho burgo de Lanúvio está à guarda dum antigo dragão
(vv. 4 - 14)(*)
………………………………………………………………………………………….
Foi para lá que, levada por tosquiados póneis, se dirigiu a minha Cíntia:
Juno foi o pretexto, mas Vénus a causa verdadeira.
Conta-me, Via Ápia, a correria triunfal que testemunhaste,
correria que fez, à roda solta, através da tua calçada,
após ter provocado vergonhosa rixa numa sinistra taberna.
Embora ausente, ainda assim ficou minha honra manchada.
Ela então (que espectáculo!), lá à frente escarranchada, ao comando,
corajosamente agitava mais as rédeas nos sItios menos planos.
E já nem falo da armação de seda do carro, nem do rapazoilo depilado,
com seus cães molossos de braceletes no pescoço:
ele está destinado a vender-se pelo óleo imundo,
após ter rapado da face a barba de que se envergonha (**)•
Enfim... Tantos eram já os agravos que meu leito havia suportado,
que decidi levantar o acampamento e mudar de cama.
No Aventino, perto do templo de Diana, mora uma tal Fílide,
pouco atraente quando sóbria, mas toda boa quando bebe;
uma outra, Teia, que habita no bosque Tarpeio,
e alva e, bem bebida, um só homem não a farta.
Convidei-as, pois, para consolar a minha noite
e dar aos meus clandestinos amores gozos insuspeitados.
Para os três, um só leito sobre as ervas, em sossego.
Queres saber o meu lugar? Fiquei no meio das duas.
Lígdamo era o chefe das bebidas; tinhamos copa de vidro, própria para o Verão,
e uma pinga grega... vinho de Metimna.
O flautista, ó Nilo, era da tua terra, Fílide tocava castanholas,
e belas rosas naturais choviam com abundância.
E Magno, [o anão,] crescendo um pouco nos bicos dos pés,
agitava as curtas mãos ao som da cava flauta.
Com as lucernas bem aviadas, nem assim a chama deixa de tremer (***);
vira-se a mesa e fica de pernas para o ar;
bem procurava eu, nos dados, a feliz figura de Vénus:
saíam-me sempre os malditos cães.
As duas cantavam... para um surdo; mostravam os peitos...a um cego:
às portas de Lanúvio, desgraçado!, estava só.
Eis senão quando, rangeu a porta nos gonzos,
e ouvi leves murmúrios junto à entrada.
Logo a seguir, empurrando os batentes, aparece Cíntia,
com a cabeleira em desalinho, mas bela na sua fúria.
Meus dedos ficam frouxos, cai-me ao chão a taça,
e mesmo tintos de vinho, os lâbios me empalidecem.
Seus olhos faíscam, enraivece-se quanto pode uma mulher.
Nem na tomada duma cidade se veria tal espectáculo.
Lança as unhas furiosas ao rosto de Fílide;
aterrorizada, Teia grita em volta: “Tragam água!”
O fulgor das luzes desinquieta o cidadão adormecido;
todas as ruelas ecoam na noite insana.
As duas muiheres, com os cabelos no ar e as túnicas soltas, 
recolhem-se à primeira tabema da rua obscura.
Cíntia, orgulhosa dos despojos, vitoriosa, volta-se para mim e,
com as costas da mão, fere-me no rosto;
deixa-me no pescoço uma marca, mordendo-o até sangrar;
bate-me de preferência nos olhos, os maiores culpados.
E quando suas mãos já estavam fartas de bater,
é Lígdamo (escondido junto ao pé esquerdo do leito)
que ela arranca, Lígdamo que, prostrado, implora a minha proteccão.
Pobre Lígdamo! Que podia eu fazer, cativo como tu?
Com mãos suplicantes, acabei, enfim, por conseguir um acordo,
pois só a muito custo permitiu que lhe tocasse os pés.
Então disse-me: “Se queres que te perdoe o crime cometido,
terás de acatar a fórmula da lei que te dito:
De hoje em diante, não passearás, aperaltado, sob o pórtico de Pompeio,
nem quando a arena do lascivo Foro regurgitar de povo.
Aviso-te de que não poderás virar o rosto para o alto do anfiteatro (****)
nem deter-te junto duma liteira aberta.
Mais importante: que Lígdamo, causador de todo este meu mal,
seja vendido e arraste um par de cadeias nos pés.”
Ditada a lei, respondi: “Serei fiel a tais imposicões.”
Ela sorriu, orgulhosa do seu poder absoluto.
Em seguida, por todos os lugares que as mulheres estranhas haviam tocado,
lança perfumes; purifica com água o limiar da porta,
ordena-me que mude completamente todos os meus mantos
e toca-me a cabeça com enxofre inflamado.
Por fim, mudados que foram os cobertores da cama,
e respondendo aos seus desejos, terçámos armas a todo o comprimento do leito.

(*) Digressão sobre a lenda anunciada.
(**) Quer-se dizer que acabará como gladiador. Como se sabe, os gladiadores, antes dos combates, untavam 0 corpo.
(***) Sinal de mau agoiro, como nos versos seguintes. E com razão, como se verá...
(****) Lugar onde ficavam as mulheres.


Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975


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