quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Elegias de Sulpícia. nos livros de Tibulo


SULPÍCIA I  (= Tibulo, Elegias, III,  XIII)

Tandem uenit amor, qualem texisse pudori
    quam nudasse alicui sit mihi fama magis.
Exorata meis illum Cytherea Camenis
    attulit in nostrum deposuitque sinum.
Exsoluit promissa Venus: mea gaudia narret,              
    dicetur si quis non habuisse sua.
Non ego signatis quicquam mandare tabellis,
    ne legat id nemo quam meus ante, uelim,
sed peccasse iuuat, uultus componere famae
    taedet: cum digno digna fuisse ferar.               


Conheci finalmente o amor! Mais vergonha teria
de o esconder, que de revelá-lo a toda a gente.
Ouvindo as minhas preces Vénus foi-me propícia
e acabou por depor Cerinto entre os meus braços!
Já senti os prazeres de Vénus! Que julgue tais prazeres
quem quer que porventura não possa experimentá-los!...
Não vou escrever versos que qualquer um possa ler
antes do meu amante. Ah! não, isso não quero!
Mas sou feliz por me ter dado. Adeus, reputação...
Amámo-nos: ele foi digno de mim, e eu dele!





II (= Tibulo, Elegias, III, XVII)

Estne tibi, Cerinthe, tuae pia cura puellae,
    quod mea nunc uexat corpora fessa calor?
A ego non aliter tristes euincere morbos
    optarim, quam te si quoque uelle putem.
At mihi quid prosit morbos euincere, si tu      
    nostra potes lento pectore ferre mala?



Já não pensas, Cerinto, na tua pobre amante,
neste corpo que uma febre doentia consome?
Não me interessa vencer minha cruel doença
se não souber que tu desejas ver-me boa.
De que me servirá curar-me se tu, por tua parte,

encaras com indiferença a febre que me rói? 



Tradução de José António Campos em Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975

Elegias, de Tibulo

                           (II, IV)

Hic mihi seruitium uideo dominamque paratam:
    iam mihi, libertas illa paterna, uale.
seruitium sed triste datur, teneorque catenis,
    et numquam misero uincla remittit Amor,
et seu quid merui seu nil peccauimus, urit.
    uror, io, remoue, saeua puella, faces.
o ego ne possim tales sentire dolores,
    quam mallem in gelidis montibus esse lapis,
stare uel insanis cautes obnoxia uentis,
    naufraga quam uasti tunderet unda maris!
nunc et amara dies et noctis amarior umbra est:
    omnia nam tristi tempora felle madent.
nec prosunt elegi nec carminis auctor Apollo:
    illa caua pretium flagitat usque manu.
ite procul, Musae, si non prodestis amanti:
    non ego uos, ut sint bella canenda, colo,
nec refero Solisque uias et qualis, ubi orbem
    compleuit, uersis Luna recurrit equis.
ad dominam faciles aditus per carmina quaero:
    ite procul, Musae, si nihil ista ualent.
at mihi per caedem et facinus sunt dona paranda,
    ne iaceam clausam flebilis ante domum:
aut rapiam suspensa sacris insignia fanis:
    sed Venus ante alios est uiolanda mihi.
illa malum facinus suadet dominamque rapacem
    dat mihi: sacrilegas sentiat illa manus.
o pereat quicumque legit uiridesque smaragdos
    et niueam Tyrio murice tingit ouem.
addit auaritiae causas et Coa puellis
    uestis et e Rubro lucida concha mari.
haec fecere malas: hinc clauim ianua sensit
    et coepit custos liminis esse canis.
sed pretium si grande feras, custodia uicta est
    nec prohibent claues et canis ipse tacet.
heu quicumque dedit fomlam caelestis auarae,
    quale bonum multis attulit ille malis!
hinc fletus rixaeque sonant, haec denique causa
    fecit ut infamis nunc deus erret Amor.
at tibi, quae pretio uictos excludis amantes,
    eripiant partas uentus et ignis opes:
quin tua tunc iuuenes spectent incendia laeti,
    nec quisquam flammae sedulus addat aquam.
seu ueniet tibi mors, nec erit qui lugeat ullus
    nec qui det maestas munus in exsequias.
at bona quae nec auara fuit, centum licet annos
    uixerit, ardentem flebitur ante rogum:
atque aliquis senior ueteres ueneratus amores
    annua constructo serta dabit tumulo
et 'bene' discedens dicet 'placideque quiescas,
    terraque securae sit super ossa leuis.'
uera quidem moneo, sed prosunt quid mihi uera?
    illius est nobis lege colendus amor.
quin etiam sedes iubeat si uendere auitas,
    ite sub imperium sub titulumque, Lares.
quidquid habet Circe, quidquid Medea ueneni,
    quidquid et herbarum Thessala terra gerit,
et quod, ubi indomitis gregibus Venus adflat amores,
    hippomanes cupidae stillat ab inguine equae,
si modo me placido uideat Nemesis mea uultu,
    mille alias herbas misceat illa, bibam.



A Némesis

Assim me vejo escravo submisso duma amante:
adeus, ó liberdade em que vim a este mundo!
Dura escravidão é a minha, mil cadeias me prendem,
triste de mim, que Amor não pensa desfazer,
antes — mas que fiz eu? — em fogo me consome.
Ardo em fogo: afasta, amante cruel, as tuas chamas.
Pudesse eu evitar tais dores, pudesse eu ser
um rochedo altaneiro na montanha gelada,
um recife oferecido à fúria do vento, batido
pelas vítreas águas marinhas devoradoras de navios!
Tal como estou, amargo é o dia, e mais amarga é a sombra da noite,
todos os meus momentos estão embebidos em fel!
Nada me vale a poesia nem a inspiracão de Apolo:
Némesis de mão estendida só pede dinheiro!
Deixai-me, ó Musas, já que não favoreceis os meus amores:
eu não me fiz poeta para contar epopeias,
nem para cantar o nascer e o pôr do sol,
nem, quando o dia finda, o regresso da lua em seus cavalos.
Com versos só quero obter fácil acesso a ela:
se para isto a poesia näo serve... adeus, Musas!
Mas não! Vou ser ladrão e criminoso para lhe arranjar presentes,
para não ficar choroso ante a sua porta trancada.
Vou roubar as oferendas depostas nos altares
e, antes de mais, profanar as imagens de Vénus.
Esta leva-me ao crime dando-me uma ambiciosa por amante:
irá sentir as minhas mãos sacrílegas.
Ah! maldito quem possui verdes esmeraldas
e tinge brancas vestes com o múrex de Tiro.
São as túnicas de Cós, as conchas do Mar Vermelho
que dão causa e motivo à avidez das amantes.
Isto as torna cruéis, isto as leva a pôr cadeados à porta
e a ter um cão que guarde o limiar do átrio.
A quem vem com as mãos cheias de ouro abre-se a porta,
os cadeados soltam-se e até o cão se cala.
Ah! o deus que dotou de beleza uma avara
uniu um grande bem a um mal ainda maior,
causa de prantos agudos e disputas, causa enfim
de que Amor seja agora um deus de má fama!
E tu, mulher que te negas a amantes pelintras,
que o vento e o fogo te roubem o ouro que amealhaste!
Todo o jovem verá alegre a tua casa a arder
e nenhum ajudará a apagar as chamas.
Se tu morreres não terás ninguém que te lamente
ou traga ao teu sepulcro alguma triste oferenda
Mas a mulher que não foi avara, ainda que tenha
vivido cem anos, será chorada junto à pira ardente!
Algum velho em memória de passados amores
cada ano virá depor flores no seu túmulo 
e dirá ao partir: “Descansa em paz, mulher,
e que a terra te seja leve sobre os ossos”.
É verdade o que eu digo, mas que me vale a verdade?
Se quero o amor de Némesis devo aceitar-lhe as leis!
Ordene-me ela a venda da mansão de meus pais,
logo te entregarei, meu Lar, aos leiloeiros!
Os venenos de Circe, os filtros de Medeia,
toda a erva que cresce nos prados da Tessália,
e os sucos que destila a égua com o cio
quando as manadas arfam no tempo do amor,
beberei tudo, e ainda mais quanto Némesis queira
contanto que ela, amável, ceda aos meus desejos.


                           (III, XIX)

Nulla tuum nobis subducet femina lectum:
    hoc primum iuncta est foedere nostra uenus.
Tu mihi sola places, nec iam te praeter in urbe
    formosa est oculis ulla puella meis.
Atque utinam posses uni mihi bella uideri!              
    Displiceas aliis: sic ego tutus ero.
Nil opus inuidia est, procul absit gloria uulgi:
    qui sapit, in tacito gaudeat ille sinu.
Sic ego secretis possum bene uiuere siluis,
    qua nulla humano sit uia trita pede.             
Tu mihi curarum requies, tu nocte uel atra
    lumen, et in solis tu mihi turba locis.
Nunc licet e caelo mittatur amica Tibullo,
    mittetur frustra deficietque Venus;
hoc tibi sancta tuae Iunonis numina iuro,               
    quae sola ante alios est mihi magna deos.
Quid facio demens? Heu! heu! mea pignora cedo;
    iuraui stulte: proderat iste timor.
Nunc tu fortis eris, nunc tu me audacius ures:
    hoc peperit misero garrula lingua malum.             
Iam faciam quodcumque uoles, tuus usque manebo,
    nec fugiam notae seruitium dominae,
sed Veneris sanctae considam uinctus ad aras:
    haec notat iniustos supplicibusque fauet.



A uma desconhecida (*)

Mulher alguma poderá arrancar-me ao teu leito:
foi nesta condição que o amor nos uniu.
Só tu me agradas, além de ti não há em Roma
quem aos meus olhos se te compare em beleza.
Pudesses tu só a mim parecer bela,
não agradar a outros! Assim sentir-me-ia seguro.
Não preciso que me invejem, que gabem a minha sorte:
homem ajuizado não revela seus prazeres!
Seria como viver sozinho no fundo dum bosque
onde não há vestígios de passadas humanas.
Tu és o repouso de meus males, és a luz que brilha
na noite negra, num deserto és todo o mundo para mim!
Pode o céu enviar nova amiga a Tibulo:
será em vão, nenhum amor em mim suscitará.
Juro-te pelo poder da tua divina Juno (**),
a única de entre todas as divindades que eu adoro.
Mas que faço, insensato? Ah! fico sem defesa!
Jurei sem reflectir. O teu temor ser-me-ia útil.
Agora sentes-te forte, excitas-me mais violentamente.
A minha língua faladora é que me pôs nesta desgraça.
Irei obedecer-te em tudo, ser teu escravo,
não mais poderei escapar ao teu domínio!
No altar da augusta Vénus irei cativo buscar refúgio:
Vénus pune os amantes cruéis, mas atende os suplicantes!

(*) Por vezes identificada om uma certa Glicera, citada em antigas biografias do poeta como a sucessora de Délia e de Némesis.

(**) Para os Romanos, cada homem tinha o seu Génio protector, e cada mulher a sua Juno. 




Tradução de José António Campos em Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Elegias, de Tibulo


                           (I, I, 1, vv. 51-75)

O quantum est auri pereat potiusque smaragdi,
     Quam fleat ob nostras ulla puella vias.
Te bellare decet terra, Messalla, marique,
     Ut domus hostiles praeferat exuvias;
Me retinent vinctum formosae vincla puellae,               
     Et sedeo duras ianitor ante fores.
Non ego laudari curo, mea Delia; tecum
     Dum modo sim, quaeso segnis inersque vocer.
Te spectem, suprema mihi cum venerit hora,
     Te teneam moriens deficiente manu.               
Flebis et arsuro positum me, Delia, lecto,
     Tristibus et lacrimis oscula mixta dabis.
Flebis: non tua sunt duro praecordia ferro
     Vincta, neque in tenero stat tibi corde silex.
Illo non iuvenis poterit de funere quisquam               
     Lumina, non virgo, sicca referre domum.
Tu manes ne laede meos, sed parce solutis
     Crinibus et teneris, Delia, parce genis.
Interea, dum fata sinunt, iungamus amores:
     Iam veniet tenebris Mors adoperta caput,               
Iam subrepet iners aetas, nec amare decebit,
     Dicere nec cano blanditias capite.
Nunc levis est tractanda Venus, dum frangere postes
     Non pudet et rixas inseruisse iuvat.
Hic ego dux milesque bonus.



A Délia

Antes deixar de haver no mundo ouro ou esmeraldas
do que por minha ausência chorar qualquer beldade.
A ti é que te cumpre, Messala, guerrear em terra e no mar,
para ornares tua casa com troféus inimigos.
Cativo eu fico, preso aos encantos de formosa amada,
posto de sentinela à sua porta insensivel.
A glória não me interessa, minha Délia: contigo
desde que esteja, pode chamar-me cobarde quem quiser.
Só a ti quero ver, quando chegar a minha hora suprema,
e estreitar ao morrer entre os braços moribundos!
Chorar-me-ás, Délia, quando me vires na pira ardente,
cobrir-me-ás de beijos e lágrimas de dor;
chorar-me-ás: o teu peito não é revestido de ferro
nem o teu doce coracão é feito de pedra.
De funeral assim, nem rapaz nem rapariga
regressará a casa de olhos enxutos.
Tu, Délia, não ofendas os meus manes, mas poupa
os teus cabelos soltos, e poupa as tuas tenras faces!
Porém, enquanto os fados consentem, unidos gozemos o amor!
Em breve, envolta em trevas, a morte surgirá,
em breve aparecerá a velhice impotente,
e então, com a cabeça encanecida, é ridículo
amar, ou dizer palavras ternas.
Agora é que é altura de prestar culto à gentil Venus,
enquanto não há vergonha em arrombar todas as portas
e é gostoso travar rixas amorosas!
Nisto sou eu bom chefe e bom soldado!



                           (I, VI)

Semper, ut inducar, blandos offers mihi voltus,
     Post tamen es misero tristis et asper, Amor.
Quid tibi saevitiae mecum est? an gloria magna est
     Insidias homini conposuisse deum?
Nam mihi tenduntur casses: iam Delia furtim            
     Nescio quem tacita callida nocte fovet.
Illa quidem tam multa negat, sed credere durum est:
     Sic etiam de me pernegat usque viro.
Ipse miser docui, quo posset ludere pacto
     Custodes: heu heu nunc premor arte mea,               
 Fingere nunc didicit causas, ut sola cubaret,
     Cardine nunc tacito vertere posse fores.
Tum sucos herbasque dedi, quis livor abiret,
     Quem facit inpresso mutua dente venus.
At tu, fallacis coniunx incaute puellae,            
     Me quoque servato, peccet ut illa nihil.
Neu iuvenes celebret multo sermone, caveto,
     Neve cubet laxo pectus aperta sinu,
Neu te decipiat nutu, digitoque liquorem
     Ne trahat et mensae ducat in orbe notas.           
Exibit quam saepe, time, seu visere dicet
     Sacra Bonae maribus non adeunda Deae.
At mihi si credas, illam sequar unus ad aras;
     Tunc mihi non oculis sit timuisse meis.
Saepe, velut gemmas eius signumque probarem,               
     Per causam memini me tetigisse manum;
Saepe mero somnum peperi tibi, at ipse bibebam
     Sobria subposita pocula victor aqua.
Non ego te laesi prudens: ignosce fatenti,
     Iussit Amor: contra quis ferat arma deos?               
Ille ego sum, nec me iam dicere vera pudebit,
     Instabat tota cui tua nocte canis.
Quid tenera tibi coniuge opus? tua si bona nescis
     Servare, frustra clavis inest foribus.
Te tenet, absentes alios suspirat amores            
     Et simulat subito condoluisse caput.
At mihi servandam credas: non saeva recuso
     Verbera, detrecto non ego vincla pedum.
Tum procul absitis, quisquis colit arte capillos,
     Et fluit effuso cui toga laxa sinu,            
Quisquis et occurret, ne possit crimen habere,
     Stet procul aut alia ~stet procul~ ante via.
Sic fieri iubet ipse deus, sic magna sacerdos
     Est mihi divino vaticinata sono.
Haec ubi Bellonae motu est agitata, nec acrem          
     Flammam, non amens verbera torta timet;
Ipsa bipenne suos caedit violenta lacertos
     Sanguineque effuso spargit inulta deam,
Statque latus praefixa veru, stat saucia pectus,
     Et canit eventus, quos dea magna monet:           
'Parcite, quam custodit Amor, violare puellam,
     Ne pigeat magno post didicisse malo.
Adtigerit, labentur opes, ut volnere nostro
     Sanguis, ut hic ventis diripiturque cinis.'
Et tibi nescio quas dixit, mea Delia, poenas;            
     Si tamen admittas, sit precor illa levis.
………………………………………………………………
Non ego te propter parco tibi, sed tua mater
     Me movet atque iras aurea vincit anus.
Haec mihi te adducit tenebris multoque timore
     Coniungit nostras clam taciturna manus,           
Haec foribusque manet noctu me adfixa proculque
     Cognoscit strepitus me veniente pedum.
Vive diu mihi, dulcis anus: proprios ego tecum,
     Sit modo fas, annos contribuisse velim.
Te semper natamque tuam te propter amabo:            
     Quicquid agit, sanguis est tamen illa tuos.
Sit modo casta, doce, quamvis non vitta ligatos
     Impediat crines nec stola longa pedes.
Et mihi sint durae leges, laudare nec ullam
     Possim ego, quin oculos adpetat illa meos,            
Et siquid peccasse putet, ducarque capillis
     Inmerito pronas proripiarque vias.
Non ego te pulsare velim, sed, venerit iste
     Si furor, optarim non habuisse manus;
Nec saevo sis casta metu, sed mente fideli,            
     Mutuus absenti te mihi servet amor.
At, quae fida fuit nulli, post victa senecta
     Ducit inops tremula stamina torta manu
Firmaque conductis adnectit licia telis
     Tractaque de niveo vellere ducta putat.            
Hanc animo gaudente vident iuvenumque catervae
     Conmemorant merito tot mala ferre senem,
Hanc Venus exalto flentem sublimis Olympo
     Spectat et, infidis quam sit acerba, monet.
Haec aliis maledicta cadant; nos, Delia, amoris            
     Exemplum cana simus uterque coma.




A Délia

Para me atraíres, Amor, mostras-me um rosto carinhoso
mas logo me tratas com dureza e crueldade.
Porquê tanta crueza? Para um deus como tu
que glória há em tecer ardis a um pobre mortal?
Já mil tramas me esperam: Délia, furtiva e hábil,
no silêncio da noite encontra-se com outro!
Ela jura que não. Mas como acreditá-la,
se ao marido ela jura que eu não sou seu amante?...

Fui eu que lhe ensinei, insensato, a maneira
de iludir os seus guardas. Desgraçado! Agora contra mim se
                                                                            [volta a artimanha.
Aprendeu a inventar razões para se deitar sozinha
e a abrir uma porta sem a fazer ranger.
Também lhe dei unguentos para disfarçar as marcas
arroxeadas dos dentes na brancura do corpo.
E tu, marido incauto desta cabra ardilosa,
vigia-me também a mim para ela a ninguém se entregar!
Não a deixes falar demais com os rapazes,
nem reclinar-se à mesa com os peitos seminus,
nem trocar olhares furtivos, nem com o dedo traçar
sobre a mesa redonda invisíveis sinais.
Vigia-lhe as saídas, ainda que declare
ir aos ritos da deusa que é proibida aos homens (*)
Mas se ma confiares, só eu a seguirei aos altares,
sem receio do castigo que possam ter meus olhos (**)
Tanta vez, a pretexto de lhe admirar as jóias,
de lhe gabar o anel, eu lhe peguei na mão!
Tanta vez te pus a dormir dando-te vinho puro
enquanto eu o bebia misturado com água,
e assim vencia. Não te traí por querer, francamente o confesso:
o Amor assim o quis. Quem pode resistir aos deuses?!
Era por minha causa — sem pejo te digo a verdade —,
que a tua cadela passava as noites a ladrar.
Para que queres tu uma esposa jovem? Se não sabes cuidar
do que é teu, em vão fechas a porta à chave...
Ela abraça-te, mas suspira por amores ausentes
e não tarda a fingir uma dor de cabeça...
Confia-a à minha guarda: por ela arrastarei
cadeias nos pés, e dela até suportarei cruéis chicotadas.
E então, fora daqui, vós que tratais com arte os cabelos
e deixais ondular ao vento as largas pregas da toga:
algum que se encontre no nosso caminho, se não quiser sofrer
                                                                                                 [castigo,
ou pare ao longe, ou dirija os passos por outra rua!
Assim o ordena o próprio deus, assim mo vaticinou
com a sua voz inspirada uma augusta sacerdotisa,
a qual, excitada pelo aguilhão de Belona, não teme
nem chamas ardentes, nem, delirante, o bater dos chicotes:
ela mesma fere violentamente os braços com um machado
e asperge, sem que sofra, a deusa com seu sangue,
ergue-se em pé com um dardo espetado no flanco e o peito
                                                                                                [ferido,
e revela-me os acontecimentos tal qual lhos desvenda a deusa:
“Não ouseis profanar a jovem que Amor protege:
duro castigo mais tarde vos faria de tal arrepender!
Se algum lhe tocar, os seus bens perecerão, tal como o sangue
que escorre da minha ferida, tal como esta cinza se dispersa
                                                                                         [ao vento!”
A ti, minha Délia, ameaçou-te nem sei com que tormentos:
se incorreres em falta, só peço que não sejam muito cruéis! (***)
……………………………………………………………………………………………
Aprende, Délia, a ser-me fiel, ainda que não tenhas os cabelos
presos por um laço, nem uses um vestido até aos pés (****).
Impõe-me duras leis, não permitas que eu louve
a beleza de outra mulher sem que os olhos me arranques;
se pensares que te atraiçoei, arrasta-me pelos cabelos
até ao meio da rua, mesmo que eu esteja inocente;
de bater-te nunca eu seria capaz, mas se tal fúria
se apossasse de mim, antes quisera não ter mãos!
Mas não sejas fiel só por medo: que seja um mútuo amor
a, mesmo na minha ausência, te levar à fidelidade.
Mulher que nunca foi fiel, mais tarde, sob o peso da velhice
e da miséria, trabalha o fuso e a roca com mão trémula,
e por magro salário entrelaça os fios no tear
ou carda a lã de brancos novelos.
Tal mulher faz o gozo das multidões de jovens
que comentam a sua velhice infeliz dizendo: “Foi bem feito!”
Do alto do Olimpo, Vénus, soberba, contempla os prantos
de tal mulher, e assim mostra como é dura com os amantes infiéis.
Mas possam estas maldições cair só sobre os outros! Sejamos
                                                                                               [nós, Délia,
um exemplo de amor, mesmo quando tivermos os cabelos brancos!

(*) Cibele, a cujo ritual só podiam assistir mulheres.
(**) A cegueira era o castigo atribuído aos homens que assistissem aos mistérios de Cibele.
(***) Omitimos os vv. 57-66.
(****) Vestuário próprio das matronas romanas. Daqui se conclui que Délia devia ser uma liberta.





Tradução de José António Campos em Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Carmina Priapea


                            14 (VI)

Quod sum ligneus, ut vides, Priapus
et falx lignea ligneusque penis,
prendam te tamen et tenebo prensum
totamque hanc sine fraude, quantacunque est,
tormento citharaque tensiorem
ad costam tibi septimam recondam.

Conquanto de pau feito - imagem dc Priapo que estás vendo –
e embora a foice seja, também, . feita de pau, bem como o pénis,
capaz sou de agarrar-te e ter-te fortemente dominado.
Então (nem será crime…), esta bisarma toda, avantajada
de cítara qual corda, ou de balista o cabo, ‘inda mais tesa,
no cu te enterrarei, até a costela  sétima tocar.

                           15 (XXIII)
Quicunque hic violam rosamve carpet
furtivumque holus aut inempta poma,
defectus pueroque feminaque
hac tentigine, quam videtis in me,
rumpatur, precor, usque mentulaque
nequiquam sibi pulset umbilicum.


Quem quer que colha aqui ou rosa ou violeta,
ou leve uma hortaliça ou fruto não comprado,
rapaz seja ou mulher, o deixo derreado:
com toda esta tesão, que manifesta vedes,
rebentarei seu corpo, e juro que o caralho,
com toda a impunidade, o umbigo atingirá.

                            16 (XLIV)

Nolite omnia, quae loquor, putare
per lusum mihi per iocumque dici.
deprensos ego ter quaterque fures
omnis, non dubitetis, irrumabo


Não cuideis que isto tudo que vos digo
o digo só por graça e a brincar
Terceira ou quarta vez ladrão que apanhe,
por certo tende que o hei-de embrochar.

                            17 (XLVII)
Quod partem madidam mei videtis
per quam significor Priapus esse,
non ros est, mihi crede, nec pruina,
sed quod sponte sua solet remitti,
cum mens est pathicae memor puellae.


O humor que estás a ver no órgão do meu corpo
plo qual todos conhecem ser eu o deus Priapo,
não é orvalho, não, nem crede quo geada,
mas algo quo segrega por sua própria força,
à mente se me vem a imagem duma puta.

                           18 (LXXVIII)

At di deaeque dentibus tuis escam
negent, amicae cunnilinge vicinae,
per quem puella fortis ante nec mendax
et quae solebat impigro celer passu
ad nos venire, nunc misella Landice  
vix posse iurat ambulare prae fossis.


Que os deuses e as deusas recusem aos teus dentes alimento,
ó torpe mineteiro da minha boa amiga e vizinha.
Por tua causa só, mulher outrora forte e escorreita,
que usava vir correndo aos braços meus com passo saltitante,
agora, desgraçada, queixando-se do grelo amargamente,
diz mal poder andar, que tanto não consente o órgão cavo.

                            19 (IX)
Cur obscaena mihi pars sit sine veste, requirens
quaere, tegat nullus cur sua tela deus.
fulmen habens mundi dominus tenet illud aperte;
nec datur aequoreo fuscina tecta deo.
nec Mavors illum, per quem valet, occulit ensem;
nec latet in tepido Palladis hasta sinu.
num pudet auratas Phoebum portare sagittas?
clamne solet pharetram ferre Diana suam?
num tegit Alcides nodosae robora clavae?
sub tunica virgam num deus ales habet?
quis Bacchum gracili vestem praetendere thyrso,
quis te celata cum face vidit, Amor?
nec mihi sit crimen, quod mentula semper aperta est:
hoc mihi si telum desit, inermis ero.


Perguntas porque tenho as partes pudibundas descobertas.
Sabendo fica então que nenhum deus esconde os próprios dardos:
o deus do universo o raio tem, que aperta em mão segura;
ao deus do mar foi dado tridente, não porém pra que o escondesse;
nem esconde Marte a espada, da sua fortaleza testemunho;
nem Palas tem guardada, na tepidez do seio, sua lança.
Acaso cora Febo de as setas resplendentes exibir?
Acaso as escondidas Diana vês a aljava transportar?
Acaso tapa Alcides (*) a maça de carvalho com seus nós?
Acaso o deus alado (* *) a vara sob a túnica conserva?
Quem viu Baco jamais co’a veste o grácil tirso disfarçar?
Jamais alguém te viu, a ti, Amor, co’a face rebuçada?
Portanto, não me acuses, por sempre a mostra ter este caralho:
tal dardo se me falta, não mais terás que um deus de arma privado.

(*) Hercules.
(**) Hermes.


                           20 (XXXIII)

Naidas antiqui Dryadasque habuere Priapi,
et quo tenta dei vena subiret, erat.
nunc adeo nihil est, adeo mea plena libido est,
ut Nymphas omnis interiisse putem.
turpe quidem factu, sed ne tentigine rumpar,
falce mihi posita fiet amica manus.


Tempo houve em que os Priapos co’as Náiades e Dríades brincavam:
do deus a verga tesa podia consolar-se.
Agora nada tenho, e a ponto tal estou cheio de desejos,
que as Ninfas todas cuido já terem perecido.
A minha acção é torpe, mas por que não rebente de tesão,
depondo já a foice, da amiga mão me sirvo.

                           21 (LIV)

CD si scribas temonemque insuper addas,

qui medium volt te scindere, pictus erit.

Escreve lá CD; por cima, uma rabiça lhe acrescenta:
aquele que te fende aí tens desenhado.


                           22 (LIX)
Praedictum tibi ne negare possis:
si fur veneris, inpudicus exis.


Aviso aqui te fica, que o não negues:
Se vens como ladrão, vais paneleiro.
                          
                           23 (LVI)

Derides quoque, fur, et impudicum
ostendis digitum mihi minanti?
heu heu me miserum — quid ista lignum est
quae me terribilem facit videri?
mandabo domino tamen salaci,
ut pro me velit irrumare fures.

Ladrão, ‘inda te ris das ameaças,
o dedo malcriado me mostrando? (*)
Ó misero de mim, que e de pau feito
aquilo que me dá um ar temível.
Porém, direi ao dono (ele é lascivo...)
que embroche em meu lugar todo o ladrão.
(*) Já os antigos costumavam fazer o gesto do digitus impudicus., i. é, com o dedo médio estendido e os dois do lado dobrados.

                           Petrónio (?), frg. 54

Foeda est in coitu et brevis voluptas
et taedet Veneris statim peractae.
Non ergo ut pecudes libidinosae
caeci protinus irruamus illuc
(nam languescit amor peritque flamma);
sed sic sic sine fine feriati
et tecum iaceamus osculantes.
Hic nullus labor est ruborque nullus;
hoc iuvit, iuvat et diu iuvabit;
hoc non deficit incipitque semper.

Do coito o gozo é breve e sem pudor,
e mal passa o prazer, já aborrece.
Assim, como animais libidinosos,
não nos lancemos, cegos, lá nos sítio,
pois mal o ardor languesce, morre a chama;
mas antes, em infinda e doce calma,
na cama quero estar contigo aos beijos:
esforço não fazemos, não coramos,
e o que agradou, agrada e agradará,
nem desfalece o ardor, mas recomeça.


                          Petrónio, frg. 33
Aurea mala mihi, dulcis mea Martia mittis,
mittis et hirsutae munera castaneae.
Omnia grata putem, sed si magis ipsa venire
ornares donum, pulcra puella, tuum.
Tu licet apportes stringentia mala palatum,
tristia mandenti est melleus ore sapor.
At si dissimulas, multum mihi cara, venire,
oscula cum pomis mitte ; vorabo libens.

                    
Ó minha doce Márcia: maçãs doiradas mandas entregar-me,
e mandas-me um presente do hirsuto castanheiro.
Tudo isso me é jucundo; porém, se me chegasses também tu,
teu dom enfeitarias, formosa rapariga.
E mesmo que me desses maçãs que ao paladar não agradassem,
na boca, o azedo gosto em mel se verteria.
Porém, se não queres vir, mulher quo sobre todas me és querida,
c’os pomos manda beijos: com ardor os comerei.

                          C. I. L., IV, 1516

Hic ego nunc futui formosam forma puellam
laudatam a multis, sed lutus into erat.


Aqui, agora mesmo, mulher fodi de grande formosura,
de muitos tão gabada, mas merda lá por dentro.





Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975