quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Elegias, de Tibulo

                           (II, IV)

Hic mihi seruitium uideo dominamque paratam:
    iam mihi, libertas illa paterna, uale.
seruitium sed triste datur, teneorque catenis,
    et numquam misero uincla remittit Amor,
et seu quid merui seu nil peccauimus, urit.
    uror, io, remoue, saeua puella, faces.
o ego ne possim tales sentire dolores,
    quam mallem in gelidis montibus esse lapis,
stare uel insanis cautes obnoxia uentis,
    naufraga quam uasti tunderet unda maris!
nunc et amara dies et noctis amarior umbra est:
    omnia nam tristi tempora felle madent.
nec prosunt elegi nec carminis auctor Apollo:
    illa caua pretium flagitat usque manu.
ite procul, Musae, si non prodestis amanti:
    non ego uos, ut sint bella canenda, colo,
nec refero Solisque uias et qualis, ubi orbem
    compleuit, uersis Luna recurrit equis.
ad dominam faciles aditus per carmina quaero:
    ite procul, Musae, si nihil ista ualent.
at mihi per caedem et facinus sunt dona paranda,
    ne iaceam clausam flebilis ante domum:
aut rapiam suspensa sacris insignia fanis:
    sed Venus ante alios est uiolanda mihi.
illa malum facinus suadet dominamque rapacem
    dat mihi: sacrilegas sentiat illa manus.
o pereat quicumque legit uiridesque smaragdos
    et niueam Tyrio murice tingit ouem.
addit auaritiae causas et Coa puellis
    uestis et e Rubro lucida concha mari.
haec fecere malas: hinc clauim ianua sensit
    et coepit custos liminis esse canis.
sed pretium si grande feras, custodia uicta est
    nec prohibent claues et canis ipse tacet.
heu quicumque dedit fomlam caelestis auarae,
    quale bonum multis attulit ille malis!
hinc fletus rixaeque sonant, haec denique causa
    fecit ut infamis nunc deus erret Amor.
at tibi, quae pretio uictos excludis amantes,
    eripiant partas uentus et ignis opes:
quin tua tunc iuuenes spectent incendia laeti,
    nec quisquam flammae sedulus addat aquam.
seu ueniet tibi mors, nec erit qui lugeat ullus
    nec qui det maestas munus in exsequias.
at bona quae nec auara fuit, centum licet annos
    uixerit, ardentem flebitur ante rogum:
atque aliquis senior ueteres ueneratus amores
    annua constructo serta dabit tumulo
et 'bene' discedens dicet 'placideque quiescas,
    terraque securae sit super ossa leuis.'
uera quidem moneo, sed prosunt quid mihi uera?
    illius est nobis lege colendus amor.
quin etiam sedes iubeat si uendere auitas,
    ite sub imperium sub titulumque, Lares.
quidquid habet Circe, quidquid Medea ueneni,
    quidquid et herbarum Thessala terra gerit,
et quod, ubi indomitis gregibus Venus adflat amores,
    hippomanes cupidae stillat ab inguine equae,
si modo me placido uideat Nemesis mea uultu,
    mille alias herbas misceat illa, bibam.



A Némesis

Assim me vejo escravo submisso duma amante:
adeus, ó liberdade em que vim a este mundo!
Dura escravidão é a minha, mil cadeias me prendem,
triste de mim, que Amor não pensa desfazer,
antes — mas que fiz eu? — em fogo me consome.
Ardo em fogo: afasta, amante cruel, as tuas chamas.
Pudesse eu evitar tais dores, pudesse eu ser
um rochedo altaneiro na montanha gelada,
um recife oferecido à fúria do vento, batido
pelas vítreas águas marinhas devoradoras de navios!
Tal como estou, amargo é o dia, e mais amarga é a sombra da noite,
todos os meus momentos estão embebidos em fel!
Nada me vale a poesia nem a inspiracão de Apolo:
Némesis de mão estendida só pede dinheiro!
Deixai-me, ó Musas, já que não favoreceis os meus amores:
eu não me fiz poeta para contar epopeias,
nem para cantar o nascer e o pôr do sol,
nem, quando o dia finda, o regresso da lua em seus cavalos.
Com versos só quero obter fácil acesso a ela:
se para isto a poesia näo serve... adeus, Musas!
Mas não! Vou ser ladrão e criminoso para lhe arranjar presentes,
para não ficar choroso ante a sua porta trancada.
Vou roubar as oferendas depostas nos altares
e, antes de mais, profanar as imagens de Vénus.
Esta leva-me ao crime dando-me uma ambiciosa por amante:
irá sentir as minhas mãos sacrílegas.
Ah! maldito quem possui verdes esmeraldas
e tinge brancas vestes com o múrex de Tiro.
São as túnicas de Cós, as conchas do Mar Vermelho
que dão causa e motivo à avidez das amantes.
Isto as torna cruéis, isto as leva a pôr cadeados à porta
e a ter um cão que guarde o limiar do átrio.
A quem vem com as mãos cheias de ouro abre-se a porta,
os cadeados soltam-se e até o cão se cala.
Ah! o deus que dotou de beleza uma avara
uniu um grande bem a um mal ainda maior,
causa de prantos agudos e disputas, causa enfim
de que Amor seja agora um deus de má fama!
E tu, mulher que te negas a amantes pelintras,
que o vento e o fogo te roubem o ouro que amealhaste!
Todo o jovem verá alegre a tua casa a arder
e nenhum ajudará a apagar as chamas.
Se tu morreres não terás ninguém que te lamente
ou traga ao teu sepulcro alguma triste oferenda
Mas a mulher que não foi avara, ainda que tenha
vivido cem anos, será chorada junto à pira ardente!
Algum velho em memória de passados amores
cada ano virá depor flores no seu túmulo 
e dirá ao partir: “Descansa em paz, mulher,
e que a terra te seja leve sobre os ossos”.
É verdade o que eu digo, mas que me vale a verdade?
Se quero o amor de Némesis devo aceitar-lhe as leis!
Ordene-me ela a venda da mansão de meus pais,
logo te entregarei, meu Lar, aos leiloeiros!
Os venenos de Circe, os filtros de Medeia,
toda a erva que cresce nos prados da Tessália,
e os sucos que destila a égua com o cio
quando as manadas arfam no tempo do amor,
beberei tudo, e ainda mais quanto Némesis queira
contanto que ela, amável, ceda aos meus desejos.


                           (III, XIX)

Nulla tuum nobis subducet femina lectum:
    hoc primum iuncta est foedere nostra uenus.
Tu mihi sola places, nec iam te praeter in urbe
    formosa est oculis ulla puella meis.
Atque utinam posses uni mihi bella uideri!              
    Displiceas aliis: sic ego tutus ero.
Nil opus inuidia est, procul absit gloria uulgi:
    qui sapit, in tacito gaudeat ille sinu.
Sic ego secretis possum bene uiuere siluis,
    qua nulla humano sit uia trita pede.             
Tu mihi curarum requies, tu nocte uel atra
    lumen, et in solis tu mihi turba locis.
Nunc licet e caelo mittatur amica Tibullo,
    mittetur frustra deficietque Venus;
hoc tibi sancta tuae Iunonis numina iuro,               
    quae sola ante alios est mihi magna deos.
Quid facio demens? Heu! heu! mea pignora cedo;
    iuraui stulte: proderat iste timor.
Nunc tu fortis eris, nunc tu me audacius ures:
    hoc peperit misero garrula lingua malum.             
Iam faciam quodcumque uoles, tuus usque manebo,
    nec fugiam notae seruitium dominae,
sed Veneris sanctae considam uinctus ad aras:
    haec notat iniustos supplicibusque fauet.



A uma desconhecida (*)

Mulher alguma poderá arrancar-me ao teu leito:
foi nesta condição que o amor nos uniu.
Só tu me agradas, além de ti não há em Roma
quem aos meus olhos se te compare em beleza.
Pudesses tu só a mim parecer bela,
não agradar a outros! Assim sentir-me-ia seguro.
Não preciso que me invejem, que gabem a minha sorte:
homem ajuizado não revela seus prazeres!
Seria como viver sozinho no fundo dum bosque
onde não há vestígios de passadas humanas.
Tu és o repouso de meus males, és a luz que brilha
na noite negra, num deserto és todo o mundo para mim!
Pode o céu enviar nova amiga a Tibulo:
será em vão, nenhum amor em mim suscitará.
Juro-te pelo poder da tua divina Juno (**),
a única de entre todas as divindades que eu adoro.
Mas que faço, insensato? Ah! fico sem defesa!
Jurei sem reflectir. O teu temor ser-me-ia útil.
Agora sentes-te forte, excitas-me mais violentamente.
A minha língua faladora é que me pôs nesta desgraça.
Irei obedecer-te em tudo, ser teu escravo,
não mais poderei escapar ao teu domínio!
No altar da augusta Vénus irei cativo buscar refúgio:
Vénus pune os amantes cruéis, mas atende os suplicantes!

(*) Por vezes identificada om uma certa Glicera, citada em antigas biografias do poeta como a sucessora de Délia e de Némesis.

(**) Para os Romanos, cada homem tinha o seu Génio protector, e cada mulher a sua Juno. 




Tradução de José António Campos em Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975

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