terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Elegias, de Tibulo


                           (I, I, 1, vv. 51-75)

O quantum est auri pereat potiusque smaragdi,
     Quam fleat ob nostras ulla puella vias.
Te bellare decet terra, Messalla, marique,
     Ut domus hostiles praeferat exuvias;
Me retinent vinctum formosae vincla puellae,               
     Et sedeo duras ianitor ante fores.
Non ego laudari curo, mea Delia; tecum
     Dum modo sim, quaeso segnis inersque vocer.
Te spectem, suprema mihi cum venerit hora,
     Te teneam moriens deficiente manu.               
Flebis et arsuro positum me, Delia, lecto,
     Tristibus et lacrimis oscula mixta dabis.
Flebis: non tua sunt duro praecordia ferro
     Vincta, neque in tenero stat tibi corde silex.
Illo non iuvenis poterit de funere quisquam               
     Lumina, non virgo, sicca referre domum.
Tu manes ne laede meos, sed parce solutis
     Crinibus et teneris, Delia, parce genis.
Interea, dum fata sinunt, iungamus amores:
     Iam veniet tenebris Mors adoperta caput,               
Iam subrepet iners aetas, nec amare decebit,
     Dicere nec cano blanditias capite.
Nunc levis est tractanda Venus, dum frangere postes
     Non pudet et rixas inseruisse iuvat.
Hic ego dux milesque bonus.



A Délia

Antes deixar de haver no mundo ouro ou esmeraldas
do que por minha ausência chorar qualquer beldade.
A ti é que te cumpre, Messala, guerrear em terra e no mar,
para ornares tua casa com troféus inimigos.
Cativo eu fico, preso aos encantos de formosa amada,
posto de sentinela à sua porta insensivel.
A glória não me interessa, minha Délia: contigo
desde que esteja, pode chamar-me cobarde quem quiser.
Só a ti quero ver, quando chegar a minha hora suprema,
e estreitar ao morrer entre os braços moribundos!
Chorar-me-ás, Délia, quando me vires na pira ardente,
cobrir-me-ás de beijos e lágrimas de dor;
chorar-me-ás: o teu peito não é revestido de ferro
nem o teu doce coracão é feito de pedra.
De funeral assim, nem rapaz nem rapariga
regressará a casa de olhos enxutos.
Tu, Délia, não ofendas os meus manes, mas poupa
os teus cabelos soltos, e poupa as tuas tenras faces!
Porém, enquanto os fados consentem, unidos gozemos o amor!
Em breve, envolta em trevas, a morte surgirá,
em breve aparecerá a velhice impotente,
e então, com a cabeça encanecida, é ridículo
amar, ou dizer palavras ternas.
Agora é que é altura de prestar culto à gentil Venus,
enquanto não há vergonha em arrombar todas as portas
e é gostoso travar rixas amorosas!
Nisto sou eu bom chefe e bom soldado!



                           (I, VI)

Semper, ut inducar, blandos offers mihi voltus,
     Post tamen es misero tristis et asper, Amor.
Quid tibi saevitiae mecum est? an gloria magna est
     Insidias homini conposuisse deum?
Nam mihi tenduntur casses: iam Delia furtim            
     Nescio quem tacita callida nocte fovet.
Illa quidem tam multa negat, sed credere durum est:
     Sic etiam de me pernegat usque viro.
Ipse miser docui, quo posset ludere pacto
     Custodes: heu heu nunc premor arte mea,               
 Fingere nunc didicit causas, ut sola cubaret,
     Cardine nunc tacito vertere posse fores.
Tum sucos herbasque dedi, quis livor abiret,
     Quem facit inpresso mutua dente venus.
At tu, fallacis coniunx incaute puellae,            
     Me quoque servato, peccet ut illa nihil.
Neu iuvenes celebret multo sermone, caveto,
     Neve cubet laxo pectus aperta sinu,
Neu te decipiat nutu, digitoque liquorem
     Ne trahat et mensae ducat in orbe notas.           
Exibit quam saepe, time, seu visere dicet
     Sacra Bonae maribus non adeunda Deae.
At mihi si credas, illam sequar unus ad aras;
     Tunc mihi non oculis sit timuisse meis.
Saepe, velut gemmas eius signumque probarem,               
     Per causam memini me tetigisse manum;
Saepe mero somnum peperi tibi, at ipse bibebam
     Sobria subposita pocula victor aqua.
Non ego te laesi prudens: ignosce fatenti,
     Iussit Amor: contra quis ferat arma deos?               
Ille ego sum, nec me iam dicere vera pudebit,
     Instabat tota cui tua nocte canis.
Quid tenera tibi coniuge opus? tua si bona nescis
     Servare, frustra clavis inest foribus.
Te tenet, absentes alios suspirat amores            
     Et simulat subito condoluisse caput.
At mihi servandam credas: non saeva recuso
     Verbera, detrecto non ego vincla pedum.
Tum procul absitis, quisquis colit arte capillos,
     Et fluit effuso cui toga laxa sinu,            
Quisquis et occurret, ne possit crimen habere,
     Stet procul aut alia ~stet procul~ ante via.
Sic fieri iubet ipse deus, sic magna sacerdos
     Est mihi divino vaticinata sono.
Haec ubi Bellonae motu est agitata, nec acrem          
     Flammam, non amens verbera torta timet;
Ipsa bipenne suos caedit violenta lacertos
     Sanguineque effuso spargit inulta deam,
Statque latus praefixa veru, stat saucia pectus,
     Et canit eventus, quos dea magna monet:           
'Parcite, quam custodit Amor, violare puellam,
     Ne pigeat magno post didicisse malo.
Adtigerit, labentur opes, ut volnere nostro
     Sanguis, ut hic ventis diripiturque cinis.'
Et tibi nescio quas dixit, mea Delia, poenas;            
     Si tamen admittas, sit precor illa levis.
………………………………………………………………
Non ego te propter parco tibi, sed tua mater
     Me movet atque iras aurea vincit anus.
Haec mihi te adducit tenebris multoque timore
     Coniungit nostras clam taciturna manus,           
Haec foribusque manet noctu me adfixa proculque
     Cognoscit strepitus me veniente pedum.
Vive diu mihi, dulcis anus: proprios ego tecum,
     Sit modo fas, annos contribuisse velim.
Te semper natamque tuam te propter amabo:            
     Quicquid agit, sanguis est tamen illa tuos.
Sit modo casta, doce, quamvis non vitta ligatos
     Impediat crines nec stola longa pedes.
Et mihi sint durae leges, laudare nec ullam
     Possim ego, quin oculos adpetat illa meos,            
Et siquid peccasse putet, ducarque capillis
     Inmerito pronas proripiarque vias.
Non ego te pulsare velim, sed, venerit iste
     Si furor, optarim non habuisse manus;
Nec saevo sis casta metu, sed mente fideli,            
     Mutuus absenti te mihi servet amor.
At, quae fida fuit nulli, post victa senecta
     Ducit inops tremula stamina torta manu
Firmaque conductis adnectit licia telis
     Tractaque de niveo vellere ducta putat.            
Hanc animo gaudente vident iuvenumque catervae
     Conmemorant merito tot mala ferre senem,
Hanc Venus exalto flentem sublimis Olympo
     Spectat et, infidis quam sit acerba, monet.
Haec aliis maledicta cadant; nos, Delia, amoris            
     Exemplum cana simus uterque coma.




A Délia

Para me atraíres, Amor, mostras-me um rosto carinhoso
mas logo me tratas com dureza e crueldade.
Porquê tanta crueza? Para um deus como tu
que glória há em tecer ardis a um pobre mortal?
Já mil tramas me esperam: Délia, furtiva e hábil,
no silêncio da noite encontra-se com outro!
Ela jura que não. Mas como acreditá-la,
se ao marido ela jura que eu não sou seu amante?...

Fui eu que lhe ensinei, insensato, a maneira
de iludir os seus guardas. Desgraçado! Agora contra mim se
                                                                            [volta a artimanha.
Aprendeu a inventar razões para se deitar sozinha
e a abrir uma porta sem a fazer ranger.
Também lhe dei unguentos para disfarçar as marcas
arroxeadas dos dentes na brancura do corpo.
E tu, marido incauto desta cabra ardilosa,
vigia-me também a mim para ela a ninguém se entregar!
Não a deixes falar demais com os rapazes,
nem reclinar-se à mesa com os peitos seminus,
nem trocar olhares furtivos, nem com o dedo traçar
sobre a mesa redonda invisíveis sinais.
Vigia-lhe as saídas, ainda que declare
ir aos ritos da deusa que é proibida aos homens (*)
Mas se ma confiares, só eu a seguirei aos altares,
sem receio do castigo que possam ter meus olhos (**)
Tanta vez, a pretexto de lhe admirar as jóias,
de lhe gabar o anel, eu lhe peguei na mão!
Tanta vez te pus a dormir dando-te vinho puro
enquanto eu o bebia misturado com água,
e assim vencia. Não te traí por querer, francamente o confesso:
o Amor assim o quis. Quem pode resistir aos deuses?!
Era por minha causa — sem pejo te digo a verdade —,
que a tua cadela passava as noites a ladrar.
Para que queres tu uma esposa jovem? Se não sabes cuidar
do que é teu, em vão fechas a porta à chave...
Ela abraça-te, mas suspira por amores ausentes
e não tarda a fingir uma dor de cabeça...
Confia-a à minha guarda: por ela arrastarei
cadeias nos pés, e dela até suportarei cruéis chicotadas.
E então, fora daqui, vós que tratais com arte os cabelos
e deixais ondular ao vento as largas pregas da toga:
algum que se encontre no nosso caminho, se não quiser sofrer
                                                                                                 [castigo,
ou pare ao longe, ou dirija os passos por outra rua!
Assim o ordena o próprio deus, assim mo vaticinou
com a sua voz inspirada uma augusta sacerdotisa,
a qual, excitada pelo aguilhão de Belona, não teme
nem chamas ardentes, nem, delirante, o bater dos chicotes:
ela mesma fere violentamente os braços com um machado
e asperge, sem que sofra, a deusa com seu sangue,
ergue-se em pé com um dardo espetado no flanco e o peito
                                                                                                [ferido,
e revela-me os acontecimentos tal qual lhos desvenda a deusa:
“Não ouseis profanar a jovem que Amor protege:
duro castigo mais tarde vos faria de tal arrepender!
Se algum lhe tocar, os seus bens perecerão, tal como o sangue
que escorre da minha ferida, tal como esta cinza se dispersa
                                                                                         [ao vento!”
A ti, minha Délia, ameaçou-te nem sei com que tormentos:
se incorreres em falta, só peço que não sejam muito cruéis! (***)
……………………………………………………………………………………………
Aprende, Délia, a ser-me fiel, ainda que não tenhas os cabelos
presos por um laço, nem uses um vestido até aos pés (****).
Impõe-me duras leis, não permitas que eu louve
a beleza de outra mulher sem que os olhos me arranques;
se pensares que te atraiçoei, arrasta-me pelos cabelos
até ao meio da rua, mesmo que eu esteja inocente;
de bater-te nunca eu seria capaz, mas se tal fúria
se apossasse de mim, antes quisera não ter mãos!
Mas não sejas fiel só por medo: que seja um mútuo amor
a, mesmo na minha ausência, te levar à fidelidade.
Mulher que nunca foi fiel, mais tarde, sob o peso da velhice
e da miséria, trabalha o fuso e a roca com mão trémula,
e por magro salário entrelaça os fios no tear
ou carda a lã de brancos novelos.
Tal mulher faz o gozo das multidões de jovens
que comentam a sua velhice infeliz dizendo: “Foi bem feito!”
Do alto do Olimpo, Vénus, soberba, contempla os prantos
de tal mulher, e assim mostra como é dura com os amantes infiéis.
Mas possam estas maldições cair só sobre os outros! Sejamos
                                                                                               [nós, Délia,
um exemplo de amor, mesmo quando tivermos os cabelos brancos!

(*) Cibele, a cujo ritual só podiam assistir mulheres.
(**) A cegueira era o castigo atribuído aos homens que assistissem aos mistérios de Cibele.
(***) Omitimos os vv. 57-66.
(****) Vestuário próprio das matronas romanas. Daqui se conclui que Délia devia ser uma liberta.





Tradução de José António Campos em Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975

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