domingo, 9 de março de 2014

Amores, de Ovídio


                                         III, VII

At non formosa est, at non bene culta puella,
    at, puto, non votis saepe petita meis!
hanc tamen in nullos tenui male languidus usus,
    sed iacui pigro crimen onusque toro;
nec potui cupiens, pariter cupiente puella,
    inguinis effeti parte iuvante frui.
illa quidem nostro subiecit eburnea collo
    bracchia Sithonia candidiora nive,
osculaque inseruit cupida luctantia lingua
    lascivum femori supposuitque femur,
et mihi blanditias dixit dominumque vocavit,
    et quae praeterea publica verba iuvant.
tacta tamen veluti gelida mea membra cicuta
    segnia propositum destituere meum;
truncus iners iacui, species et inutile pondus,
    et non exactum, corpus an umbra forem.
Quae mihi ventura est, siquidem ventura, senectus,
    cum desit numeris ipsa iuventa suis? 
a, pudet annorum: quo me iuvenemque virumque?
    nec iuvenem nec me sensit amica virum!
sic flammas aditura pias aeterna sacerdos
    surgit et a caro fratre verenda soror.
at nuper bis flava Chlide, ter candida Pitho,
    ter Libas officio continuata meo est;
exigere a nobis angusta nocte Corinnam
     me memini numeros sustinuisse novem.
Num mea Thessalico languent devota veneno
    corpora? num misero carmen et herba nocent,
sagave poenicea defixit nomina cera
    et medium tenuis in iecur egit acus?
carmine laesa Ceres sterilem vanescit in herbam,
    deficiunt laesi carmine fontis aquae,
ilicibus glandes cantataque vitibus uva
    decidit, et nullo poma movente fluunt.
quid vetat et nervos magicas torpere per artes?
    forsitan inpatiens fit latus inde meum.
huc pudor accessit: facti pudor ipse nocebat;
    ille fuit vitii causa secunda mei.
At qualem vidi tantum tetigique puellam!
    sic etiam tunica tangitur illa sua.
illius ad tactum Pylius iuvenescere possit
    Tithonosque annis fortior esse suis.
haec mihi contigerat; sed vir non contigit illi.
    quas nunc concipiam per nova vota preces?
credo etiam magnos, quo sum tam turpiter usus,
    muneris oblati paenituisse deos.
optabam certe recipi — sum nempe receptus;
    oscula ferre — tuli; proximus esse — fui. 
quo mihi fortunae tantum? quo regna sine usu?
    quid, nisi possedi dives avarus opes?
sic aret mediis taciti vulgator in undis
    pomaque, quae nullo tempore tangat, habet.
a tenera quisquam sic surgit mane puella,
    protinus ut sanctos possit adire deos?
Sed, puto, non blanda: non optima perdidit in me
    oscula; non omni sollicitavit ope!
illa graves potuit quercus adamantaque durum
    surdaque blanditiis saxa movere suis.
digna movere fuit certe vivosque virosque;
    sed neque tum vixi nec vir, ut ante, fui.
quid iuvet, ad surdas si cantet Phemius aures?
    
quid miserum Thamyran picta tabella iuvat?
At quae non tacita formavi gaudia mente!
    quos ego non finxi disposuique modos!
nostra tamen iacuere velut praemortua membra
    turpiter hesterna languidiora rosa — 
quae nunc, ecce, vigent intempestiva valentque,
    nunc opus exposcunt militiamque suam.
quin istic pudibunda iaces, pars pessima nostri?
    sic sum pollicitis captus et ante tuis.
tu dominum fallis; per te deprensus inermis
    tristia cum magno damna pudore tuli.
Hanc etiam non est mea dedignata puella
    molliter admota sollicitare manu;
sed postquam nullas consurgere posse per artes
    inmemoremque sui procubuisse videt,
'quid me ludis?' ait, 'quis te, male sane, iubebat
    invitum nostro ponere membra toro? 
aut te traiectis Aeaea venefica lanis
    devovet, aut alio lassus amore venis.'
nec mora, desiluit tunica velata soluta — 
    et decuit nudos proripuisse pedes! — 
neve suae possent intactam scire ministrae,
    dedecus hoc sumpta dissimulavit aqua.




Não é muito formosa, nem o corpo traz com arte embelezado;
nem creio que espertasse em mim por possui-la íntimo anseio.
Mas tive-a nos braços... Só que (tão murcho estava!) para nada:
no leito preguiçoso, jazi, qual peso morto, envergonhado.
Não pude, desejoso, e com desejo igual da parte dela,
gozar do amável órgão que tenho entre as virilhas... mas sem força.
Bem se esforçou a bela, meu pescoço envolvendo com seus bracos, 
uns braços de marfim, mais cândidos que a neve de Sitónia;
depois com ardentes beijos, co’a minha ávida língua pelejou;
lasciva, a sua coxa por sob a minha coxa deslizava;
e disse-me ternuras, e, como escrava, dono me chamou:
enfim, o que é costume dizer-se em tais momentos de prazer.
Foi tudo em vão; a verga, de gélida cicuta possuída (*),
inerte persistiu, apática aos esforços da mulher;
um tronco sem acção, estátua, peso inútil parecia;
difícil de dizer, se corpo ou sombra era o que eu estava.
Nos anos da velhice, se acaso lá chegar, como será,
se agora a juventude os seus deveres próprios já não cumpre?
Da idade me envergonho, pois sendo ainda novo e sendo homem,
de novo ou de viril em mim nada encontrou a minha amante.
Assim, Vestal eterna, que à sua guarda tem as pias chamas,
o leito abandonou, tal recatada irmã, que o irmão respeita.
Co’a loira Clide, há pouco, dois prélios travei continuados,
e três co’a branca Pito, e outros três com Líbade travei;
e vem-me ao pensamento aquela curta noite em que Corina,
à luta me incitando, o ataque sustentou por nove vezes.
Será que este meu corpo é presa de tessálico veneno?
Será que — desgraçado! — sou vítima de encanto ou dalgum filtro?
Ou bruxa me rogou, em tábua encerada, alguma praga,
ou com finas agulhas meu fígado teria perfurado?
Com tais encantamentos, se viu Ceres tomada em seca erva;
com tais encantamentos, as águas na nascente se secaram;
por artes de magia, a glande do carvalho se desprende
e a uva da videira; enfim, sem que o sacudam, qualquer fruto.
Não poderá meus nervos a arte da magia entorpecer?
Sim, creio que foi ela, que frígido tornou todo o meu corpo;
também certo pudor — pudor que a actos tais não aproveita —
a tudo se juntou e foi segunda causa do insucesso.
Seu belo corpo vi, seu corpo com meus dedos afaguei,
qual túnica que toca, sem nada de permeio, sua pele.
Àquele toque só, Netor recobraria a juventude,
Titon a fortaleza, mais do que sua idade prometera.
Mulher, o sexo dá, a quem virilidade não demonstra.
Pra quê fazer mais preces, pra quê novos amores pretender?
Sem dúvida que os deuses, do dom liberalmente concedido
o uso torpe vendo, arrependidos já, outro não dão.
Queria ardentemente em sua casa entrar: fui recebido;
beijá-la: pois beijei; unir seu corpo ao meu: unido esteve.
Pra quê tanta ventura? Pra quê um reino ter, sem o proveito?
Pra quê, se, qual avaro, dos bens que tinha à mão não desfrutei? 
Assim sedento está, cercado de água, Tântalo indiscreto,
e pomos tem bem perto, que nunca com seus dedos tocará;
assim pela manhã, da tenra esposa o homem se despede,
podendo santamente o altar dos santos deuses demandar.
E chego a acreditar na falta de ternura ou de calor
dos beijos que me deu; não me excitou talvez como sabia:
quisesse ela esforçar-se, carvalhos graves, diamantes duros,
ou rochas insensiveis — a todos animara com ternuras;
estímulo daria a tudo o que animado ou homem fosse.
Porém, quem estava ali não era nem ser vivo nem um macho.
Que gozo dar pudera a orelhas surdas Fémio com seu canto?
Que gozo dar pudera a mais bela pintura ao pobre Tâmiras?(**)
E eu que imaginara, no íntimo do peito, mil volúpias!
Na minha fantasia, oh! quantas posições não ensaiei!
Porém, este meu membro, bem morto antes de tempo, ali jazia 
(vergonha das vergonhas!), qual rosa que na véspera colheram.
Mas ei-lo que se entesa (agora, intempestivo!) e ganha vida;
agora se propõe fazer sua função e sua guerra.
Ó parte vil de mim! Se tens pudor, persiste aí deitada,
pois já com tais promessas por ti fui uma vez bem intrujado.
A amante me iludiste; por tua causa, vendo-me sem arma,
sofri dano cruel, de mui grande vergonha acrescentado.
Além de tudo o mais, indigno não achou a minha amante
carícias fazer-lhe, co’a delicada mão, suavemente.
Mas vendo que era vã a arte consumida em levantá-lo,
e vendo que o meu órgào da sua serventia se esquecera,
exclama-me: “lnsensato! Pra quê troçar de mim? Quem te obrigava
a vir, contra vontade, teu corpo reclinar em minha cama?
Será que bruxa de Ea, co’a agulha entrelaçando fios de lã,
te traz enfeitiçado? Ou vens, cansado já, doutra aventura?”
E nisto, 0 leito deixa, da túnica ondulante se cobrindo
(e até seus pés descalços, na fuga, lhe acrescentam mil encantos!).
E por que não soubessem as servas que dali saía intacta,
mandando trazer água, assim tamanha ofensa dissimula (***)



(*) A cicuta era uma planta donde se extraía um veneno mortal:
o corpo começava a arrefecer, de baixo para cima.

(*) Tämiras era cego (V. Propércio, II, 22, nota ***).

(***) Quer dizer: lava-se... como se fosse preciso.



                                              II, IV

Non ego mendosos ausim defendere mores
    falsaque pro vitiis arma movere meis.
confiteor—siquid prodest delicta fateri;
    in mea nunc demens crimina fassus eo.
odi, nec possum, cupiens, non esse quod odi;
    heu, quam quae studeas ponere ferre grave est!
Nam desunt vires ad me mihi iusque regendum;
    auferor ut rapida concita puppis aqua.
non est certa meos quae forma invitet amores—
    centum sunt causae, cur ego semper amem.
sive aliqua est oculos in humum deiecta modestos,
    uror, et insidiae sunt pudor ille meae;
sive procax aliqua est, capior, quia rustica non est,
    spemque dat in molli mobilis esse toro.
aspera si visa est rigidasque imitata Sabinas,
    velle, sed ex alto dissimulare puto.
sive es docta, places raras dotata per artes;
    sive rudis, placita es simplicitate tua.
est, quae Callimachi prae nostris rustica dicat
    carmina—cui placeo, protinus ipsa placet.
est etiam, quae me vatem et mea carmina culpet—
    culpantis cupiam sustinuisse femur.
molliter incedit—motu capit; altera dura est—
    at poterit tacto mollior esse viro.
haec quia dulce canit flectitque facillima vocem,
    oscula cantanti rapta dedisse velim; 
haec querulas habili percurrit pollice chordas—
    tam doctas quis non possit amare manus?
illa placet gestu numerosaque bracchia ducit
    et tenerum molli torquet ab arte latus—
ut taceam de me, qui causa tangor ab omni,
    illic Hippolytum pone, Priapus erit!
tu, quia tam longa es, veteres heroidas aequas
    et potes in toto multa iacere toro.
haec habilis brevitate sua est. corrumpor utraque;
    conveniunt voto longa brevisque meo.
non est culta—subit, quid cultae accedere possit;
    ornata est—dotes exhibet ipsa suas.
candida me capiet, capiet me flava puella,
    est etiam in fusco grata colore Venus.
seu pendent nivea pulli cervice capilli,
    Leda fuit nigra conspicienda coma;
seu flavent, placuit croceis Aurora capillis.
    omnibus historiis se meus aptat amor.
me nova sollicitat, me tangit serior aetas;
    haec melior, specie corporis illa placet.
Denique quas tota quisquam probet urbe puellas,
    noster in has omnis ambitiosus amor.



Não quero desculpar-me da vida dissoluta a que me voto,
nem falsos argumentos invoco, que atenuem os meus vícios. 
Confesso os meus pecados, se acaso me aproveita a confissão.
E pois que confessei, proponho-me contar meus desvarios.
Meus erros odiando, c’os odiados erros me comprazo.
Como é penosa a carga — ainda mais, se quero sacudi-la!
Mas já me desfalecem as forças e o poder de dominar-me:
sacodem-me as paixões; qual barca, ando das ondas ao sabor.
De estímulo me serve toda e qualquer beldade, sem excepção;
sem conto são as causas que tornam minha alma enamorada:
se vejo uma mulher de olhar posto no chão pejadamente,
meu peito se incendeia, e já de seu pudor cativo fico;
estoutra, provocante, por rústica não ser também me prende
e dá-me forte esperança de ser viva e mexida em fofo leito;
da outra o ar feroz, as rígidas Sabinas semelhando,
sintoma é de desejos no íntimo do peito bem guardados;
se acaso és cultivada, engenho teu raríssimo me agrada;
se és rude e sem cultura, simpleza é uma virtude que me atrai;
é rústico — diz outra — Calímaco comigo comparado:
se a esta sou jucundo, razão de sobra tenho pra que a ame;
critica-me aqueloutra meus versos e minha arte asperamente:
mau grado tal censura, montar-me em suas coxas desejara;
um andar efeminado não deixa de agradar-me; um outro, duro, 
talvez possa abrandar, se um macho lhe impuser seu forte jugo; 
daquela o doce canto e os tons da voz sem esforço modelados
me incitam a roubar aos lábios seus cantantes ternos beijos;
plas cordas gemebundas estoutra os dedos passa saltitantes:
quem há que amar não possa assim tão hábeis mãos perdidamente?
Daquela os movimentos, dos braços a cadência, me deslumbram:
bandeia a tenra anca, aos sons da arte doce respondendo:
(De mim não falo já, que a mínima razão faz inflamar.)
Hipólito ali ponde: Hipólito não é, mas sim Príapo; (*)
e a ti, que és tao comprida, às velhas heroinas te comparo:
teu corpo assim tão longo toda a extensão do leito ocupará;
mas esta é pequenina — Por esta ou por aquela me enamoro:
a grande e a pequena despertam-me o desejo por igual;
não cuida esta de si? Com tratamentos fora mais formosa;
e aquela vem composta? Aos olhos meus exibe seus encantos;
se é alva, me cativa; cativa-me igualmente se for loira;
e até se for trigueira, não deixa, fosca Vénus, de agradar-me;
se, escuros, seus cabelos escorrem dum pescoço alvo de neve,
de Leda me recordo, que negra cabeleira embelezava;
se vejo uma outra loira, cabelos loiros tem a bela Aurora:
assim, o meu amor encontra sempre par na antiga lenda;
se é nova me desperta; mas se é madura já, também me toca:
daquela o aspecto vence, mas esta tem por si sabedoria.
Enfim, se em toda a Urbe há sempre um amador desta ou daquela,
por todas me enamoro — que todas sem excepção meu peito inflamam.


(*) Hipólito é o mais celebrado símbolo de castidade; quanto a Príapo, ver, nesta mesma edição, os Carmina Priapea e respectiva introdução.


Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975


quarta-feira, 5 de março de 2014

Sátiras de Horácio


                           I, 2

Nil medium est. sunt qui nolint tetigisse nisi illas
quarum subsuta talos tegat instita veste,
contra alius nullam nisi olenti in fornice stantem.             
quidam notus homo cum exiret fornice, 'macte 
virtute esto' inquit sententia dia Catonis;
'nam simul ac venas inflavit taetra libido,
huc iuvenes aequom est descendere, non alienas
permolere uxores.' 'nolim laudarier' inquit               
'sic me' mirator cunni Cupiennius albi.
audire est operae pretium, procedere recte
qui moechis non voltis, ut omni parte laborent
utque illis multo corrupta dolore voluptas
atque haec rara cadat dura inter saepe pericla.               
hic se praecipitem tecto dedit, ille flagellis
ad mortem caesus, fugiens hic decidit acrem
praedonum in turbam, dedit hic pro corpore nummos,
hunc perminxerunt calones; quin etiam illud
accidit, ut cuidam testis caudamque salacem               
demeterent ferro. 'iure' omnes: Galba negabat.
tutior at quanto merx est in classe secunda,
libertinarum dico: Sallustius in quas
non minus insanit quam qui moechatur. at hic si,
qua res, qua ratio suaderet quaque modeste               
munifico esse licet, vellet bonus atque benignus
esse, daret quantum satis esset nec sibi damno
dedecorique foret. verum hoc se amplectitur uno, 
hoc amat et laudat: 'matronam nullam ego tango',
ut quondam Marsaeus, amator Originis ille,               
qui patrium mimae donat fundumque laremque,
'nil fuerit mi' inquit 'cum uxoribus umquam alienis.'
verum est cum mimis, est cum meretricibus, unde
fama malum gravius quam res trahit. an tibi abunde
personam satis est, non illud, quidquid ubique               
officit, evitare? bonam deperdere famam,
rem patris oblimare malum est ubicumque. quid inter-
est in matrona, ancilla peccesne togata?
Villius in Fausta Sullae gener, hoc miser uno
nomine deceptus, poenas dedit usque superque               
quam satis est, pugnis caesus ferroque petitus,
exclusus fore, cum Longarenus foret intus.
huic si muttonis verbis mala tanta videnti
diceret haec animus 'quid vis tibi? numquid ego a te
magno prognatum deposco consule cunnum               
velatumque stola, mea cum conferbuit ira?'
quid responderet? 'magno patre nata puella est.'
…………………………………………………………
num, tibi cum faucis urit sitis, aurea quaeris
pocula? num esuriens fastidis omnia praeter               
pavonem rhombumque? tument tibi cum inguina, num, si
ancilla aut verna est praesto puer, impetus in quem
continuo fiat. malis tentigine rumpi?
non ego; namque parabilem amo venerem facilemque.



Prefiro amores prontos e fáceis

Em nada existe a moderação. Uns só querem achegar-se a fêmeas 
que usem vestido com barra bordada a cobrir-lhes o artelho;
um outro, ao contrário, retoiça com rameira em mal-cheiroso lupanar.
Como dum bordel saísse uma vez certo homem conhecido,
brada-lhe o bom-senso de Catão: “Honra à tua virtude!
Aqui, pois, é que os jovens devem entrar,
mal o desejo libidinoso lhes intumescer as veias,
não indo assim espetar mulheres casadas.”
“Não quero para mim tal gabação”, diz Cupiénio,
amador de conas patrícias.
Vale a pena, ó vós que aos adúlteros êxitos não desejais,
saberdes como em toda a parte eles trabalhos afrontam,
e como amiúde é aguado pela dor o prazer,
raro, e quanta vez colhido em meio de riscos terríveis.
Um atirou-se do telhado abaixo, outro foi morto à chicotada;
este, em fuga, cair vai nas mãos de animoso bando de ladrões; 
aquele seu corpo remiu a peso de ouro;
aqueloutro mijaram-lhe em cima os criados. E até aconteceu
que a um cortaram-lhe os colhões e o membro gozão.
“De pleno direito !”, exclamam todos; só Galba discordava.
Como é mais seguro o comércio na segunda classe,
quero dizer entre as libertas!
Vilío, “genro” de Sula por parte de Fausta, infeliz,
só pelo nome seduzido, sofreu punição maior que o delito:
bem socado, com ferro acometido,
foi posto fora, enquanto Longareno dentro a gozava.
Se ao suportar males tamanhos, sua alma, do caralho intérprete,
a ele se dirigisse — “Que pretendes tu? Porventura exijo eu de ti
uma cona, de grande cônsul oriunda,
tapada com uma estola, quando estou cheio de raiva?”,
— que resposta obteria? “É a filha dum pai ilustre.”
……………………………………………………………………………………
Quando sede ardente as goelas te abrasa, será que procuras
áurea taça? Se estás esfomeado, a tudo fastio mostras
excepto ao pavão e ao rodovalho? Se a tesão te aflige
e tens à vista criada ou escravo jovem, aptos a aguentar o choque,
deixar-te-ás rebentar de cio?
Eu não: prefiro amores prontos e fáceis.



Tradução de J. Lourenço de Carvalho em Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975

terça-feira, 4 de março de 2014

Elegias, de Propércio


                                  II, XXIII

Cui fugienda fuit indocti semita vulgi,
    ipsa petita lacu nunc mihi dulcis aqua est.
ingenuus quisquam alterius dat munera servo,
    ut promissa suae verba ferat dominae?
et quaerit totiens 'Quaenam nunc porticus illam
    integit?' et 'Campo quomovet illa pedes?'
deinde, ubi pertuleris, quos dicit fama labores
    Herculis, ut scribat 'Muneris ecquid habes?'
cernere uti possis vultum custodis amari,
    captus et immunda saepe latere casa?
quam care semel in toto nox vertitur anno!
    a pereant, si quos ianua clausa iuvat!
contra, reiecto quae libera vadit amictu,
    custodum et nullo saepta timore, placet?
cui saepe immundo Sacra conteritur Via socco,
    nec sinit esse moram, si quis adire velit;
differet haec numquam, nec poscet garrula, quod
    astrictus ploret saepe dedisse pater,
nec dicet ' Timeo, propera iam surgere, quaeso:
    infelix, hodie vir mihi rure venit.'
et quas Euphrates et quas mihi misit Orontes,
    me iuerint: nolim furta pudica tori;
libertas quoniam nulli iam restat amanti:
    nullus liber erit, si quis amare volet.

Eu, que antes evitava da turba ignara as sendas percorrer,
as águas acho doces, que agora em lagos busco. (*)
Então um homem livre presentes há-de dar ao servo doutrem,
a fim de que transmita à dona seus recados?
E sempre há-de inquirir: “À sombra de que pórtico se encontra?” 
“Qual é do Campo Márcio a parte que demanda?”
Enfim, após passares por quantas penas de Hércules se contam, 
consegues que te escreva. Que ganhas tu com isso?
É grande recompensa o gesto ver azedo do porteiro
e ter de achar refúgio, retido em canto imundo? (**)
Ah! Como me sai caro apenas uma noite em todo um ano!
Ao demo todo o homem que portas quer cerradas.
Por mim, mais aprecio muiher que, com a túnica traçada,
liberta vai de guardas, sem medos que a limitem.
Nos pés sujas tamancas, percorre sem cessar a Via Sacra;
se alguém quer abordá-la, demoras não consente;
não guarda pra amanhã, nem faz grandes conversas pra que pagues
um preço que exaspere um pai muito avarento (***)
E nunca te dirá: “Levanta-te depressa, tenho medo;
Perdida estou! Do campo vem hoje meu marido”.
Aquelas me convêm, que o Eufrates e o Orontes aqui pôs;
amores recatados, no leito não os quero,
que deixam os amantes de toda a liberdade espoliados.
Desista de ser livre quem quer ser amador.


(*) Linguagem metafórica. Quer o poeta dizer que, gostando outrora de ter uma amante só dele, agora prefere as mulheres públicas.
(**) Propércio recorda os tempos em quo a chegada súbita do marido o obrigava a econder-se em lugares menos... higiénicos.
(***) O pai avarento fica etarrecido com as depesas sexuais do filho.



                                               IV, VIII
 disce, quid Esquilias hac nocte fugarit aquosas,
    cum uicina nouis turba cucurrit agris.
Lanuuium annosi uetus est tutela draconis,
……………………………………………………………..
huc mea detonsis auecta est Cynthia mannis:
    causa fuit Iuno, sed mage causa Venus.
Appia, dic quaeso, quantum te teste triumphum
    egerit effusis per tua saxa rotis!
[turpis in arcana sonuit cum rixa taberna;
    si sine me, famae non sine labe meae.]
spectaclum ipsa sedens primo temone pependit,
    ausa per impuros frena mouere locos.
serica nam taceo uulsi carpenta nepotis
    atque armillatos colla Molossa canis,
qui dabit immundae uenalia fata saginae,
    uincet ubi erasas barba pudenda genas.
cum fieret nostro totiens iniuria lecto,
    mutato uolui castra mouere toro.
Phyllis Auentinae quaedam est uicina Dianae,
    sobria grata parum: cum bibit, omne decet.
altera Tarpeios est inter Teia lucos,
    candida, sed potae non satis unus erit.
his ego constitui noctem lenire uocatis,
    et Venere ignota furta nouare mea.
unus erat tribus in secreta lectulus herba.
    quaeris concubitus? inter utramque fui.
Lygdamus ad cyathos, uitrique aestiua supellex
    et Methymnaei Graeca saliua meri.
Nile, tuus tibicen erat, crotalistria phillis,
    haec facilis spargi munda sine arte rosa,
nanus et ipse suos breuiter concretus in artus
    iactabat truncas ad caua buxa manus.
sed neque suppletis constabat flamma lucernis,
    reccidit inque suos mensa supina pedes.
me quoque per talos Venerem quaerente secundos
    semper damnosi subsiluere canes.
cantabant surdo, nudabant pectora caeco:
    Lanuuii ad portas, ei mihi, solus eram;
cum subito rauci sonuerunt cardine postes,
    et leuia ad primos murmura facta Laris.
nec mora, cum totas resupinat Cynthia ualuas,
    non operosa comis, sed furibunda decens.
pocula mi digitos inter cecidere remissos,
    palluerantque ipso labra soluta mero.
fulminat illa oculis et quantum femina saeuit,
    spectaclum capta nec minus urbe fuit.
Phyllidos iratos in uultum conicit unguis:
    territa uicinas Teia clamat aquas.
lumina sopitos turbant elata Quiritis,
    omnis et insana semita nocte sonat.
illas direptisque comis tunicisque solutis
    excipit obscurae prima taberna uiae.
Cynthia gaudet in exuuiis uictrixque recurrit
    et mea peruersa sauciat ora manu,
imponitque notam collo morsuque cruentat,
    praecipueque oculos, qui meruere, ferit.
atque ubi iam nostris lassauit bracchia plagis,
    Lygdamus ad plutei fulcra sinistra latens
eruitur, geniumque meum protractus adorat.
    Lygdame,nil potui: tecum ego captus eram.
supplicibus palmis tum demum ad foedera ueni,
    cum uix tangendos praebuit illa pedes,
atque ait "admissae si uis me ignoscere culpae,
    accipe, quae nostrae formula legis erit.
tu neque Pompeia spatiabere cultus in umbra,
    nec cum lasciuum sternet harena Forum.
colla caue inflectas ad summum obliqua theatrum,
    aut lectica tuae se det aperta morae.
Lygdamus in primis, omnis mihi causa querelae,
    ueneat et pedibus uincula bina trahat."
indixit leges: respondi ego "legibus utar".
    riserat imperio facta superba dato.
dein, quemcumque locum externae tetigere puellae,
    suffiit, at pura limina tergit aqua,
imperat et totas iterum mutare lucernas,
    terque meum tetigit sulpuris igne caput.
atque ita mutato per singula pallia lecto
    respondi, et toto soluimus arma toro.

Eis o que esta noite pôs em alvoroço o bairro de Esquílias, de águas abundante,
e fez a vizinhança acorrer em massa aos novos jardins.
O velho burgo de Lanúvio está à guarda dum antigo dragão
(vv. 4 - 14)(*)
………………………………………………………………………………………….
Foi para lá que, levada por tosquiados póneis, se dirigiu a minha Cíntia:
Juno foi o pretexto, mas Vénus a causa verdadeira.
Conta-me, Via Ápia, a correria triunfal que testemunhaste,
correria que fez, à roda solta, através da tua calçada,
após ter provocado vergonhosa rixa numa sinistra taberna.
Embora ausente, ainda assim ficou minha honra manchada.
Ela então (que espectáculo!), lá à frente escarranchada, ao comando,
corajosamente agitava mais as rédeas nos sItios menos planos.
E já nem falo da armação de seda do carro, nem do rapazoilo depilado,
com seus cães molossos de braceletes no pescoço:
ele está destinado a vender-se pelo óleo imundo,
após ter rapado da face a barba de que se envergonha (**)•
Enfim... Tantos eram já os agravos que meu leito havia suportado,
que decidi levantar o acampamento e mudar de cama.
No Aventino, perto do templo de Diana, mora uma tal Fílide,
pouco atraente quando sóbria, mas toda boa quando bebe;
uma outra, Teia, que habita no bosque Tarpeio,
e alva e, bem bebida, um só homem não a farta.
Convidei-as, pois, para consolar a minha noite
e dar aos meus clandestinos amores gozos insuspeitados.
Para os três, um só leito sobre as ervas, em sossego.
Queres saber o meu lugar? Fiquei no meio das duas.
Lígdamo era o chefe das bebidas; tinhamos copa de vidro, própria para o Verão,
e uma pinga grega... vinho de Metimna.
O flautista, ó Nilo, era da tua terra, Fílide tocava castanholas,
e belas rosas naturais choviam com abundância.
E Magno, [o anão,] crescendo um pouco nos bicos dos pés,
agitava as curtas mãos ao som da cava flauta.
Com as lucernas bem aviadas, nem assim a chama deixa de tremer (***);
vira-se a mesa e fica de pernas para o ar;
bem procurava eu, nos dados, a feliz figura de Vénus:
saíam-me sempre os malditos cães.
As duas cantavam... para um surdo; mostravam os peitos...a um cego:
às portas de Lanúvio, desgraçado!, estava só.
Eis senão quando, rangeu a porta nos gonzos,
e ouvi leves murmúrios junto à entrada.
Logo a seguir, empurrando os batentes, aparece Cíntia,
com a cabeleira em desalinho, mas bela na sua fúria.
Meus dedos ficam frouxos, cai-me ao chão a taça,
e mesmo tintos de vinho, os lâbios me empalidecem.
Seus olhos faíscam, enraivece-se quanto pode uma mulher.
Nem na tomada duma cidade se veria tal espectáculo.
Lança as unhas furiosas ao rosto de Fílide;
aterrorizada, Teia grita em volta: “Tragam água!”
O fulgor das luzes desinquieta o cidadão adormecido;
todas as ruelas ecoam na noite insana.
As duas muiheres, com os cabelos no ar e as túnicas soltas, 
recolhem-se à primeira tabema da rua obscura.
Cíntia, orgulhosa dos despojos, vitoriosa, volta-se para mim e,
com as costas da mão, fere-me no rosto;
deixa-me no pescoço uma marca, mordendo-o até sangrar;
bate-me de preferência nos olhos, os maiores culpados.
E quando suas mãos já estavam fartas de bater,
é Lígdamo (escondido junto ao pé esquerdo do leito)
que ela arranca, Lígdamo que, prostrado, implora a minha proteccão.
Pobre Lígdamo! Que podia eu fazer, cativo como tu?
Com mãos suplicantes, acabei, enfim, por conseguir um acordo,
pois só a muito custo permitiu que lhe tocasse os pés.
Então disse-me: “Se queres que te perdoe o crime cometido,
terás de acatar a fórmula da lei que te dito:
De hoje em diante, não passearás, aperaltado, sob o pórtico de Pompeio,
nem quando a arena do lascivo Foro regurgitar de povo.
Aviso-te de que não poderás virar o rosto para o alto do anfiteatro (****)
nem deter-te junto duma liteira aberta.
Mais importante: que Lígdamo, causador de todo este meu mal,
seja vendido e arraste um par de cadeias nos pés.”
Ditada a lei, respondi: “Serei fiel a tais imposicões.”
Ela sorriu, orgulhosa do seu poder absoluto.
Em seguida, por todos os lugares que as mulheres estranhas haviam tocado,
lança perfumes; purifica com água o limiar da porta,
ordena-me que mude completamente todos os meus mantos
e toca-me a cabeça com enxofre inflamado.
Por fim, mudados que foram os cobertores da cama,
e respondendo aos seus desejos, terçámos armas a todo o comprimento do leito.

(*) Digressão sobre a lenda anunciada.
(**) Quer-se dizer que acabará como gladiador. Como se sabe, os gladiadores, antes dos combates, untavam 0 corpo.
(***) Sinal de mau agoiro, como nos versos seguintes. E com razão, como se verá...
(****) Lugar onde ficavam as mulheres.


Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975


segunda-feira, 3 de março de 2014

Elegias, de Propércio

                            II, XII


Quicumque ille fuit, puerum qui pinxit Amorem,
    nonne putas miras hunc habuisse manus?
is primum vidit sine sensu vivere amantis,
    et levibus curis magna perire bona.
idem non frustra ventosas addidit alas,
    fecit et humano corde volare deum:
scilicet alterna quoniam iactamur in unda,
    nostraque non ullis permanet aura locis.
et merito hamatis manus est armata sagittis,
    et pharetra ex umero Cnosia utroque iacet:
ante ferit quoniam, tuti quam cernimus hostem,
    nec quisquam ex illo vulnere sanus abit.
in me tela manent, manet et puerilis imago:
    sed certe pennas perdidit ille suas;
evolat heu nostro quoniam de pectore nusquam,
    assiduusque meo sanguine bella gerit.
quid tibi iucundum est siccis habitare medullis?
    si pudor est, alio traice tela una!
intactos isto satius temptare veneno:
    non ego, sed tenuis vapulat umbra mea.
quam si perdideris, quis erit qui talia cantet,
    (haec mea Musa levis gloria magna tua est),
qui caput et digitos et lumina nigra puellae,
    et canat ut soleant molliter ire pedes?

  
Quem quer que fosse aquele, que Amor pintou em forma de menino,
dotado era (não achas?) de mãos maravilhosas.
Foi quem primeiro viu a insensatez da vida dos amantes
e como grandes bens por vãos cuidados perdem.
Também não foi sem causa que ao vento asas abertas lhe juntou:
e fez um deus alado com humano coração:
assim significou que do vaivém das ondas somos jogo,
e em todos os sentidos a nossa brisa sopra.
E foi com fundamento que a mão lhe armou de setas anzoladas
e Gnósia aljava aos ombros determinou de pôr-lhe,
pois feridos somos antes que o inimigo oculto vislumbremos,
nem pode alguém sarar do golpe desferido.
Em mim seus dardos ficam, em mim fica a imagem do menino;
as asas, todavia, parece ter perdido,
pois nunca do meu peito se mostra decidido a apartar-se,
mas antes, no meu sangue, constante guerra faz.
Porque é que te comprazes em ter secas entranhas por morada? 
Mulher: se ele é menino, abriga-o no teu peito.
Melhor fora tentar em corpo ainda são esse veneno:
não é a mim que feres, mas antes sombra ténue:
se a morte lhe causares, quem pode teus encantos celebrar?
(A minha branda Musa em teu louvor consiste.)
Quem mais pode cantar os dedos, a cabeça, os olhos negros
da minha amante, e os pés, com seu andar tao brando?



                              II, XXII

Scis here mi multas pariter placuisse puellas;
    scis mihi, Demophoon, multa venire mala.
nulla meis frustra lustrantur compita plantis;
    o nimis exitio nata theatra meo,
sive aliquis molli diducit candida gestu
    bracchia, seu varios incinit ore modos!
interea nostri quaerunt sibi vulnus ocelli,
    candida non tecto pectore si qua sedet,
sive vagi crines puris in frontibus errant,
    Indica quos medio vertice gemma tenet.
quae si forte aliquid vultu mihi dura negarat,
    frigida de tota fronte cadebat aqua.
quaeris, Demophoon, cur sim tam mollis in omnis?
    quod quaeris, 'quare' non habet ullus amor.
cur aliquis sacris laniat sua bracchia cultris
    et Phrygis insanos caeditur ad numeros?
uni cuique dedit vitium natura creato:
    mi fortuna aliquid semper amare dedit.
me licet et Thamyrae cantoris fata sequantur,
    numquam ad formosas, invide, caecus ero.
sed tibi si exilis videor tenuatus in artus,
    falleris: haud umquam est culta labore Venus.
percontere licet: saepe est experta puella
    officium tota nocte valere meum.
Iuppiter Alcmenae geminas requieverat Arctos,
    et caelum noctu bis sine rege fuit;
nec tamen idcirco languens ad fulmina venit:
    nullus amor vires eripit ipse suas.
quid? cum e complexu Briseidos iret Achilles,
    num fugere minus Thessala tela Phryges?
quid? ferus Andromachae lecto cum surgeret Hector?
    bella Mycenaeae non timuere rates?
ille vel hic classis poterant vel perdere muros:
    hic ego Pelides, hic ferus Hector ego.
aspice uti caelo modo sol modo luna ministret:
    sic etiam nobis una puella parum est.
altera me cupidis teneat foveatque lacertis,
    altera si quando non sinit esse locum;
aut si forte irata meo sit facta ministro,
    ut sciat esse aliam, quae velit esse mea!
nam melius duo defendunt retinacula navim,
    tutius et geminos anxia mater alit.
 
Aut si es dura, nega: sin es non dura, venito!
    quid iuvat haec nullo ponere verba loco?
hic unus dolor est ex omnibus acer amanti,
    speranti subito si qua venire negat.
quanta illum toto versant suspiria lecto,
    cum recipi, quae non venerit, ipsa vetat?
et rursus puerum quaerendo audita fatigat,
    quem, quae scire timet, quaerere fata iubet. 



Outrora, como sabes, de muitas me agradava ao mesmo tempo,
e sabes, Demofonte, os males que ‘inda sofro:
não há uma só praça, na qual impunemente ponha os pés.
Vós fostes, ó teatros, fadados pra perder-me:
bem pode, em gesto brando, abrir seus alvos braços um actor,
bem pode modular diversas melodias: (*)
não deixam, entretanto, meus olhos de buscar o ferimento
— no peito desnudado de branca espectadora,
ou nuns cabelos soltos, em pura fronte errantes daqueloutra,
com índia jóia presos no alto da cabeça.
Se acaso uma, mais dura, por gestos se negava aos meus desejos,
um frígido suor da fronte me escorria.
Perguntas, Demofonte, porque e que sou a todas tão sensível.
Bem podes perguntar: amor não tem “porquê”.
Porque há quem os próprios braços com facas consagradas dilacere
e possa mutilar-se aos sons da flauta insanos ? (**)
A cada criatura a natureza deu sua paixão:
em sorte me foi dado ter sempre algum amor.
De Tâmiras, o bardo, bem podem perseguir-me os duros fados, (***)
que nunca, ó invejoso, pràs belas serei cego.
Se magro te pareço, ou se achas os meus membros definhados,
enganas-te, que a Vénus sem esforço presto culto.
E podes perguntar-lhe: bastantes vezes teve a minha amante
a prova que o trabalho a noite inteira cumpro.
Durante duas noites, de Alcmena Jove o leito conheceu:
ficou por duas noites o Olimpo sem seu rei,
nem foi tal a aventura, que aos raios regressasse enfraquecido:
as suas próprias forças amor nunca arrebata.
Não vês como ia Aquiles, dos braços de Briseida se apartando?
Mais fogem os Troianos da lança do Tessálio.
Não vês o fero Heitor, de Andrómaca deixando o doce leito?
As naves de Micenas o ataque não temeram?
Podiam tais heróis armada ou fortaleza destruir.
Pois nisto sou Aquiles, pois nisto fero Heitor.
É ver como trabalham, à vez, o sol e a lua lá no céu:
por isso, prò meu gosto, é pouco uma só fêmea.
Em seus lascivos braços me aperte qualquer delas e me aqueça,
se a outra, junto a si, lugar não me consente;
se acaso alguma vez despeja no meu servo suas iras,
sabendo fique que outra se entrega ao meu amor.
A nave, por exemplo, protegem-na melhor duas amarras;
se a mãe cria dois filhos, já corre menor risco.

Se és dura, diz já “Não!”; mas, se hás-de consentir, vem sem demora:
que gosto te darão promessas que não cumpres?
É este, pròs amantes, de todo o sofrimento o mais amargo:
se espera e, de repente, lhe diz que já não vem.
Então, quantos suspiros o fazem revolver-se em todo o leito!
Porque é que não quer vê-lo? Será que o não conhece?
Depois massacra o servo, insiste que lhe conte o que ela disse,
e manda-o por novas que teme conhecer.

(*) 0 poeta está mais atento à assistência fenüuina.
(**) Trata-se de ritos orientais.
(***) Tâmiras era cego



Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975