sábado, 24 de outubro de 2009

ANTÓNIO LOBO DE CARVALHO (1730-1787)



2.ª parte


À morte do Abade de Polvoreira, José Moreira da Silva

Ms. 8582, p. 14

Deserta solitária Polvoreira
Agora estás de todo abandonada,
Já de teu Cedro à sombra dilatada,
Não dorme Guimarães sem cabeleira;

Como está só! Nem uma choradeira
S’encontra ao pé de ti, nem pela estrada,
Quando nessa espessura bem povoada,
De carne, vinho e Pão, foste uma feira.

Tarde ou nunca, um l’Abbé aí se apanha,
Que a Momo, e a Baco no seu lar hospede
Com tanto asseio, profusão tamanha;

Mas tem por certo e o mesmo caso o pede,
Que ao atravessar de Letes a campanha,
Se foi com fala, não morreu com sede.

Pag. 549



Ms. 8582, p. 22

Ao mesmo, por ocasião de uma Função que fez em Sacavém, constou de festa de Igreja, touros, etc., querendo ele mesmo ser o Pregador, pediu licença ao Patriarca Saldanha, que lha não quis conceder, porém o Talaya mandando preparar uma Cela ridiculamente armada, recitou nela um Elogio a El-Rei D. José, a quem se dirigia a dita função.

Pregaste meu Jan-Dias gentilmente,
Contrito Sacavém assim o abona
E a plebe excomungada então chorona,
De pranto fez no Tejo horrenda enchente.

Julgarão ser da Prédica incipiente
Quem de lança e Cavalo só blasona,
Mas em textos de Rego, Paiva e Pona,
O que aos burros se faz, fizeste à gente!

Duro freio puseste a esse malvado
Saloio, que mudando hoje de trilho,
Pregador te acredita, jubilado.

O que me resta agora é se te pilho
Nas têmporas que vem, feito Prelado
A dar Ordens menores a teu Filho (*).

(*) “Tinha um Filho, que nas Têmporas próximas havia de tomar Ordens:” (Nota do copista).

Pag. 550


A João Xavier de Matos, pelos versos sentidos que fez a sua Olaia.


Por que chamas cruel, dura e fingida
À bela Olaia, Matos embusteiro?
Há-de querer-te à força? És o primeiro!
Se ela vê, que não tens modo de vida.

Como há-de ela gostar de ser querida,
Se tu, ora Pastor, ora Barqueiro,
De Ouvidor, de Poeta, e Cavalheiro
Fazes uma mixórdia desabrida!

Nada amigo, se queres que ela caia
Não lhe mandes miminhos de Poeta,
Dá-lhe o sapato, a meia, o manto, a saia.

Esta é de Amor a escolha mais discreta,
Que escusas assim de ir atrás de Olaia
Toda a vida a gemer, feito um pateta!

Pag. 553


Ms. 8582, p. 49

A um Leigo do Convento de Jesus, chamado Frei António das Angústias

Borracho de estamenha, odre sarnento,
Mil parabéns te dou ao novo estado,
Que de estúpido Leigo a um jubilado
Lente de rolhas vais com largo vento:

Se há longos anos metes fogo lento
Nessa pança, que a mais de vinho aguado,
Frei Bordão será hoje o teu Prelado,
Adega desta casa o teu convento.

Bebe esponja claustral, até que a fumaça
Das vasilhas de França encha as pichorras
Dumas bêbadas tripas de outra raça;

E antes que os limos dos Tonéis escorras,
Fuja o do Carmo, fuja o leão da Graça,
Que hoje o que reina é o leão dos Borras!

Pag. 556


Ms. 8582, p. 67

À grande e ridícula quantidade de papeis que se imprimiram naquele tempo

Que não oiça eu gritar neste Rocio
Nessas ruas, e becos de Lisboa,
Mais que um milhão de cegos que apregoa
Papeis sem graça, versos com bafio!

Passa um mês, passa um ano, e sai a fio
Mau Entremez, má Égloga, má Loa,
Sem que haja ao menos uma coisa boa
Entre tantas, tão dignas de bafio!

Que é desta gente sábia que critica
E a tudo que é alheio dá de rosto,
Por que o seu no tinteiro deixar fica?

Certo é que o Estudo cansa e dá desgosto,
Bom é ralhar: bem asno é quem se aplica.
Basta gritar, boa crítica, bom gosto!...

Pag. 558


Ms. 8582, p. 67

A João Xavier de Matos, estando para sair da sua prisão da Vidigueira, onde era ouvidor pelo Ex.mo Marquês de Nisa

João não venhas cá, inda que envolto
Vivas dessa prisão no horror profundo.
Tens côdea certa, e cama em que dar fundo
Não é tão pouco, tuto questo es molto.

Tudo aqui com ladrões anda revolto,
O homem sério co’o traste vagabundo,
Que mal sabe as tramóias deste mundo
Quem te dá parabéns por te ver solto:

O Castelo, e o Texugo bem fadado
São os dois a quem podes ter inveja,
Com o vinho a eito, com as moças abastado:

Mas disto rirás tu, sempre assim seja.
Depois que estás na serra ou no montado
Do liberal Pastor que reina em Beja. (*)

(*) “O Bispo de Beja favoreceu muito o d.º. Matos” (nota do copista)

Pag. 559


Ms. 8793, f. 45

Agora, meu Porrão, que estás casado
Olho nela até ver, toma sentido,
Não lhe mostres afecto desmedido,
Para que não te habilite a ser coitado.

Foge-lhe de estilo afidalgado,
Tu chama-lhe mulher, ela a ti marido,
Que esta frase, que diz mano Queridos pais,
É o memo que corno desejado..

Isto d’Ópera, assembleia, ou outro ensejo,
Bem que nunca lá a leves, não é perda,
Não serás cuco ao menos no desejo.

E se a chibança d’honra se não herda,
Come chouriço, põe-te no Além-Tejo,
Bebe-lhe bom vinho, e vai beber da merda.

Pag. 566


De: 40 sonnets (inédits?) de António Lobo de Carvalho, Claude Maffre, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1976, pag. 543-569, Sep. Arquivo Cultural Português, 10



Ao João Xavier de Matos, namorando por grosso e miúdo quantas mulheres há em Lisboa

Apenas vê deixada da costura
Por trás da adufe a tímida donzela,
Como um raio, João, com os olhos nela
Lhe encampas reverente urna mesura;

Safa-se a moça, e o pai que por ventura
Vem chamar o aguadeiro da janela,
Repara então que a filha se acautela
Dessa tua cismática ternura.

Por amante basbaque a bom capricho
Te aponta ao dedo o ginja furibundo,
Se é que pronta não tem a pá do lixo:

Casa-te, amigo meu, e logra o mundo;
Que é descanso maior ser corno fixo,
Do que andar putanheiro vagabundo.
Pag. 5

A morte do Canaveta, confeiteiro que se finou de gálico

Aqui jaz galicado (e quem diria
Que tão pouco durasse!) o Canaveta;
Já o rabo estendeu, porque a punheta
Este pedaço de asno aborrecia:

Se acaso a alguém da fanchonice ouvia
Louvar qualquer, ou expressão discreta,
Ardia logo, e à custa da boceta
Por dois bolos que dava é que fodia:

Morreu o bruto enfim de mal de amores,
E para horror da crica a sua pele
De exemplo servirá aos fodedores:

Ninguém de putas entendeu mais da que ele;
Mas putas pobres, putas de tambores:
Agora aí o têm, caguem nele!

Pag. 7


A certo alferes, cuja mulher tinha mais maridos

Não me quero calar, senão abafo:
Eu declaro quem és, ó bode humano,
Que da cobiça vil no altar profano
Sacrificando estás de injúrias gafo:

Eu declaro quem és, eu já te estafo,
E com raivosas sátiras te esgano;
Depois mijando em ti, cuco magano,
Deixo os cabrões, e com os tafuis me safo:

Não me posso conter e, sem suborno,
Digo que és dos alferes lixo, e borra,
Ó tu que trazes militar adorno!

Ora quero aprontar antes que morra
Dois mimos; — para ti, corno e mais corno;
Para tua mulher, porra e mais porra.

Pag. 9


A certas senhoritas, moradoras no bairro do autor, todas com nomes esquipáticos

Se acaso vires uma moça linda.
Que por modo de freira é que se trata,
Verbi-gratia, Eufrosina, Fortunata,
Natércia, Clori, Olaia, Femelinda:

Destas. que nosso rol não leram ainda,.
Branda, Borges, de Metos ou da Mata,
Que em um escrito põe sem lhe pôr data,
Quantos trágicos nomes traz Florinda:

Olha atento para ela, que o seu brio
Vai no rabo da escrita, ou no seu manto,
Que o demais anda tudo por um fio:

E por que horror te imprima estrondo tanto.
Todo o nome, que acaba de assobio,
É putaria, assim eu fora santo!”

Pag. 11


Na ocasião em que foi presa a Isabel Clesse, acusada de ter deitado ao marido uma ajuda de água forte

Que de novo modo, é este de impiedade,
Que a extirpar-nos vêm pela traseira,
E para aproveitar-te da cegueira
Fez pelo olho do cu a atrocidade?

Se a mulher por seu gosto fosse frade,
E do São João de Deus parca enfermeira,
Com esta vocação cristeleira
Mataria os irmãos por caridade!

Mulher, que concebeste tal na bola,
E que para acabar do homem os dias
Tornaste o bem fazer em carambola:

Se tens gosto em fazer tais obras pias,
Vai levar aos herejes esta esmola,
Serás a extirpação das heresias!

Pag. 10


Descrição do trajo das meretrizes

Quando encontrares, camarada velho,
No Rossio urna moça de alta crista,
Das que trazem na saia muita lista,
Muita pinta na capa, e pouco pêlo:

A quem a mãe de véu sobre o cabelo
Ao longe segue, falta já de vista,
Sempre ralhando, sempre tabaquista,
Nos pés da cada cor o seu chinelo:

Vendo que a um lugar sempre se roça,
Ao cheiro do melão, até que a indulgência
De algum tolo lhe pague o que ela almoça:

Pois faz ali a tua diligência,
Que eu bem posso jurar-te, que esta moça
É fazedeira, em minha consciência.

Pag. 12


Exortação moral, em que o autor persuade aos putanheiros a evitar os perigos a que andam expostos, e que vãos descritos neste

A baixa prole da ralé nojenta.
Envolta em restos de cetim barato,
Armada a vã cabeça de aparato,
Sobre aberta janela se apresenta:

A escada trepa a velha rabugenta,
A quem falta o taco já no sapato;
Batendo á porta do lascivo trato
Um pinto mais á pobre casa aumenta:

O lucro gira sempre confundido
Pelas mãos dos adelos desbastado.
E do destro garoto apercebido:

Fuja das moças todo o homem honrado,
Que além do gimbo e crédito perdido.
Não quer de vivo azougue ser minado.


Pag. 13

A um destes que se perdem por estas minhas senhoras que lha pregam na menina do olho

Que o grego cauteloso á solta vela
Sulcando os mares vá, e afronte a morte,
Bem o deve fazer, porque a consorte
Tem tanto de leal quanto de bela:

Que qualquer miserável por aquela
Que entende o trata desta mesma sorte,
Constante as aflições sempre suporte.
Até que venha a morra enfim por ela:

Vade in pace; pois quem tem a pachorra,
E quer fazer de herói nestes combates
Deve então sujeitar-se, ou viva, ou. morra:

Mas quem fez semelhantes disparates
Por mulher, que levou mais de urna porra,
Merece ir para casa dos orates.


Pag. 15


Diálogo entre um penitente freirático e um confessor casmurro

A um fradalhão bojudo e rabugento
Seus crimes confessava um desgraçado,
E entre eles dizia ter pecado
Com uma santa freira num convento

Grita o frade: «Não tardam num momento
Raios mil, que subvertam tal malvado;
Que as esposas de Cristo há profanado
No santo asilo seu, sacro aposento!

“Ora diga, infeliz; como ousaria
Tal crime confessar, e acções tão brutas
A Jesus Cristo. lá no extremo dia?...»

«Padre, deixemos pois essas disputas;
Se ele me perguntasse, eu lhe diria:
Quem vos manda. Senhor, casar com putas?»


Pag. 17

Ao inventor do famoso expediente que segura a honra dos maridos e a virtude das mulheres

Maroto vil, que forjas uma chave
Da Mulher para o cafre gadelhudo.
Diz, cafre, tão mau é ser cornudo?
Não é cornuda tanta gente grave?

Aquele órgão somente é duma clave,
Tem um só registo e um só canudo;
Se as mãos lhe deixas livres para tudo,
O mais que se presume, ela bem sabe:

Vestes-lhe a pança enfim! Bom desenfado;
Por menos foi Acteon, não com degredo.
Com uma torre de cornos castigado:

Ora, amigo, falemos em segredo:
Não lhe ponhas fusis, nem cadeado,
Põe-lhe o nariz no cu, na crica o dedo.

Pag. 18


Frutos do desengano colhidos na convivência das putas, e patenteados ao mundo no seguinte

Putedo de Lisboa, ó gente fraca,
Convosco falo, cagaçais malditos,
Convosco, a quem caralhos infinitos.
Têm batido no cu sem ser matraca:

Vós, que fazeis meiguices qual macaca,
Que suspira urna vez. outra dá gritos;
Vós que fazeis morrer bolsas, e espíritos,
Sem que para isso useis punhal, ou faca:

A todas sem excepção conjuro, atesto,
O ter-lhes hoje avante ódio fatal,
Pois carícias fingidas já detesto:

Acreditem os homens em geral.
Que à risca seguirei quanto protesto.
Pois com putas não gasto já real.


Pag. 18


À mesma, mandando retratar-se pelo Glama, célebre pintor do Porto

Mandou Terência chamar Glama um dia
Para que o seu retrato lhe fizesse,
Porém que de tal sorte a descrevesse,
Que Vénus desbancasse em bizarria:

O pintor, que o seu génio conhecia.
Porque o empenho melhor satisfizesse,
Pintou-a fornicando; mas parece
Que inda mais expressivo o pretendia.


Vai ele, pinta um frade franciscano,
Vermelho qual um cravo de Arrochela,
Com uma porra maior que o Vaticano;

Pinta a freira adorando-a da janela,
o non plus ultra escrito sobre o cano,
Ad perpetuam rei memoria nela.


Pag. 21


De: António Lobo de Carvalho (1730 – 1787), Se a lira pulsas e o pandeiro tocas... , Lisboa, & Etc., imp. 1984, 25 pag.



Mais poesias em
http://torrecanina.blogspot.com/2006/09/antologia-do-lobo.html

BIBLIOGRAFIA

Poesias joviaes e satyricas de Antonio Lobo de Carvalho.
Online: http://purl.pt/16606

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