segunda-feira, 3 de março de 2014

Elegias, de Propércio

                            II, XII


Quicumque ille fuit, puerum qui pinxit Amorem,
    nonne putas miras hunc habuisse manus?
is primum vidit sine sensu vivere amantis,
    et levibus curis magna perire bona.
idem non frustra ventosas addidit alas,
    fecit et humano corde volare deum:
scilicet alterna quoniam iactamur in unda,
    nostraque non ullis permanet aura locis.
et merito hamatis manus est armata sagittis,
    et pharetra ex umero Cnosia utroque iacet:
ante ferit quoniam, tuti quam cernimus hostem,
    nec quisquam ex illo vulnere sanus abit.
in me tela manent, manet et puerilis imago:
    sed certe pennas perdidit ille suas;
evolat heu nostro quoniam de pectore nusquam,
    assiduusque meo sanguine bella gerit.
quid tibi iucundum est siccis habitare medullis?
    si pudor est, alio traice tela una!
intactos isto satius temptare veneno:
    non ego, sed tenuis vapulat umbra mea.
quam si perdideris, quis erit qui talia cantet,
    (haec mea Musa levis gloria magna tua est),
qui caput et digitos et lumina nigra puellae,
    et canat ut soleant molliter ire pedes?

  
Quem quer que fosse aquele, que Amor pintou em forma de menino,
dotado era (não achas?) de mãos maravilhosas.
Foi quem primeiro viu a insensatez da vida dos amantes
e como grandes bens por vãos cuidados perdem.
Também não foi sem causa que ao vento asas abertas lhe juntou:
e fez um deus alado com humano coração:
assim significou que do vaivém das ondas somos jogo,
e em todos os sentidos a nossa brisa sopra.
E foi com fundamento que a mão lhe armou de setas anzoladas
e Gnósia aljava aos ombros determinou de pôr-lhe,
pois feridos somos antes que o inimigo oculto vislumbremos,
nem pode alguém sarar do golpe desferido.
Em mim seus dardos ficam, em mim fica a imagem do menino;
as asas, todavia, parece ter perdido,
pois nunca do meu peito se mostra decidido a apartar-se,
mas antes, no meu sangue, constante guerra faz.
Porque é que te comprazes em ter secas entranhas por morada? 
Mulher: se ele é menino, abriga-o no teu peito.
Melhor fora tentar em corpo ainda são esse veneno:
não é a mim que feres, mas antes sombra ténue:
se a morte lhe causares, quem pode teus encantos celebrar?
(A minha branda Musa em teu louvor consiste.)
Quem mais pode cantar os dedos, a cabeça, os olhos negros
da minha amante, e os pés, com seu andar tao brando?



                              II, XXII

Scis here mi multas pariter placuisse puellas;
    scis mihi, Demophoon, multa venire mala.
nulla meis frustra lustrantur compita plantis;
    o nimis exitio nata theatra meo,
sive aliquis molli diducit candida gestu
    bracchia, seu varios incinit ore modos!
interea nostri quaerunt sibi vulnus ocelli,
    candida non tecto pectore si qua sedet,
sive vagi crines puris in frontibus errant,
    Indica quos medio vertice gemma tenet.
quae si forte aliquid vultu mihi dura negarat,
    frigida de tota fronte cadebat aqua.
quaeris, Demophoon, cur sim tam mollis in omnis?
    quod quaeris, 'quare' non habet ullus amor.
cur aliquis sacris laniat sua bracchia cultris
    et Phrygis insanos caeditur ad numeros?
uni cuique dedit vitium natura creato:
    mi fortuna aliquid semper amare dedit.
me licet et Thamyrae cantoris fata sequantur,
    numquam ad formosas, invide, caecus ero.
sed tibi si exilis videor tenuatus in artus,
    falleris: haud umquam est culta labore Venus.
percontere licet: saepe est experta puella
    officium tota nocte valere meum.
Iuppiter Alcmenae geminas requieverat Arctos,
    et caelum noctu bis sine rege fuit;
nec tamen idcirco languens ad fulmina venit:
    nullus amor vires eripit ipse suas.
quid? cum e complexu Briseidos iret Achilles,
    num fugere minus Thessala tela Phryges?
quid? ferus Andromachae lecto cum surgeret Hector?
    bella Mycenaeae non timuere rates?
ille vel hic classis poterant vel perdere muros:
    hic ego Pelides, hic ferus Hector ego.
aspice uti caelo modo sol modo luna ministret:
    sic etiam nobis una puella parum est.
altera me cupidis teneat foveatque lacertis,
    altera si quando non sinit esse locum;
aut si forte irata meo sit facta ministro,
    ut sciat esse aliam, quae velit esse mea!
nam melius duo defendunt retinacula navim,
    tutius et geminos anxia mater alit.
 
Aut si es dura, nega: sin es non dura, venito!
    quid iuvat haec nullo ponere verba loco?
hic unus dolor est ex omnibus acer amanti,
    speranti subito si qua venire negat.
quanta illum toto versant suspiria lecto,
    cum recipi, quae non venerit, ipsa vetat?
et rursus puerum quaerendo audita fatigat,
    quem, quae scire timet, quaerere fata iubet. 



Outrora, como sabes, de muitas me agradava ao mesmo tempo,
e sabes, Demofonte, os males que ‘inda sofro:
não há uma só praça, na qual impunemente ponha os pés.
Vós fostes, ó teatros, fadados pra perder-me:
bem pode, em gesto brando, abrir seus alvos braços um actor,
bem pode modular diversas melodias: (*)
não deixam, entretanto, meus olhos de buscar o ferimento
— no peito desnudado de branca espectadora,
ou nuns cabelos soltos, em pura fronte errantes daqueloutra,
com índia jóia presos no alto da cabeça.
Se acaso uma, mais dura, por gestos se negava aos meus desejos,
um frígido suor da fronte me escorria.
Perguntas, Demofonte, porque e que sou a todas tão sensível.
Bem podes perguntar: amor não tem “porquê”.
Porque há quem os próprios braços com facas consagradas dilacere
e possa mutilar-se aos sons da flauta insanos ? (**)
A cada criatura a natureza deu sua paixão:
em sorte me foi dado ter sempre algum amor.
De Tâmiras, o bardo, bem podem perseguir-me os duros fados, (***)
que nunca, ó invejoso, pràs belas serei cego.
Se magro te pareço, ou se achas os meus membros definhados,
enganas-te, que a Vénus sem esforço presto culto.
E podes perguntar-lhe: bastantes vezes teve a minha amante
a prova que o trabalho a noite inteira cumpro.
Durante duas noites, de Alcmena Jove o leito conheceu:
ficou por duas noites o Olimpo sem seu rei,
nem foi tal a aventura, que aos raios regressasse enfraquecido:
as suas próprias forças amor nunca arrebata.
Não vês como ia Aquiles, dos braços de Briseida se apartando?
Mais fogem os Troianos da lança do Tessálio.
Não vês o fero Heitor, de Andrómaca deixando o doce leito?
As naves de Micenas o ataque não temeram?
Podiam tais heróis armada ou fortaleza destruir.
Pois nisto sou Aquiles, pois nisto fero Heitor.
É ver como trabalham, à vez, o sol e a lua lá no céu:
por isso, prò meu gosto, é pouco uma só fêmea.
Em seus lascivos braços me aperte qualquer delas e me aqueça,
se a outra, junto a si, lugar não me consente;
se acaso alguma vez despeja no meu servo suas iras,
sabendo fique que outra se entrega ao meu amor.
A nave, por exemplo, protegem-na melhor duas amarras;
se a mãe cria dois filhos, já corre menor risco.

Se és dura, diz já “Não!”; mas, se hás-de consentir, vem sem demora:
que gosto te darão promessas que não cumpres?
É este, pròs amantes, de todo o sofrimento o mais amargo:
se espera e, de repente, lhe diz que já não vem.
Então, quantos suspiros o fazem revolver-se em todo o leito!
Porque é que não quer vê-lo? Será que o não conhece?
Depois massacra o servo, insiste que lhe conte o que ela disse,
e manda-o por novas que teme conhecer.

(*) 0 poeta está mais atento à assistência fenüuina.
(**) Trata-se de ritos orientais.
(***) Tâmiras era cego



Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975



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