domingo, 9 de março de 2014

Amores, de Ovídio


                                         III, VII

At non formosa est, at non bene culta puella,
    at, puto, non votis saepe petita meis!
hanc tamen in nullos tenui male languidus usus,
    sed iacui pigro crimen onusque toro;
nec potui cupiens, pariter cupiente puella,
    inguinis effeti parte iuvante frui.
illa quidem nostro subiecit eburnea collo
    bracchia Sithonia candidiora nive,
osculaque inseruit cupida luctantia lingua
    lascivum femori supposuitque femur,
et mihi blanditias dixit dominumque vocavit,
    et quae praeterea publica verba iuvant.
tacta tamen veluti gelida mea membra cicuta
    segnia propositum destituere meum;
truncus iners iacui, species et inutile pondus,
    et non exactum, corpus an umbra forem.
Quae mihi ventura est, siquidem ventura, senectus,
    cum desit numeris ipsa iuventa suis? 
a, pudet annorum: quo me iuvenemque virumque?
    nec iuvenem nec me sensit amica virum!
sic flammas aditura pias aeterna sacerdos
    surgit et a caro fratre verenda soror.
at nuper bis flava Chlide, ter candida Pitho,
    ter Libas officio continuata meo est;
exigere a nobis angusta nocte Corinnam
     me memini numeros sustinuisse novem.
Num mea Thessalico languent devota veneno
    corpora? num misero carmen et herba nocent,
sagave poenicea defixit nomina cera
    et medium tenuis in iecur egit acus?
carmine laesa Ceres sterilem vanescit in herbam,
    deficiunt laesi carmine fontis aquae,
ilicibus glandes cantataque vitibus uva
    decidit, et nullo poma movente fluunt.
quid vetat et nervos magicas torpere per artes?
    forsitan inpatiens fit latus inde meum.
huc pudor accessit: facti pudor ipse nocebat;
    ille fuit vitii causa secunda mei.
At qualem vidi tantum tetigique puellam!
    sic etiam tunica tangitur illa sua.
illius ad tactum Pylius iuvenescere possit
    Tithonosque annis fortior esse suis.
haec mihi contigerat; sed vir non contigit illi.
    quas nunc concipiam per nova vota preces?
credo etiam magnos, quo sum tam turpiter usus,
    muneris oblati paenituisse deos.
optabam certe recipi — sum nempe receptus;
    oscula ferre — tuli; proximus esse — fui. 
quo mihi fortunae tantum? quo regna sine usu?
    quid, nisi possedi dives avarus opes?
sic aret mediis taciti vulgator in undis
    pomaque, quae nullo tempore tangat, habet.
a tenera quisquam sic surgit mane puella,
    protinus ut sanctos possit adire deos?
Sed, puto, non blanda: non optima perdidit in me
    oscula; non omni sollicitavit ope!
illa graves potuit quercus adamantaque durum
    surdaque blanditiis saxa movere suis.
digna movere fuit certe vivosque virosque;
    sed neque tum vixi nec vir, ut ante, fui.
quid iuvet, ad surdas si cantet Phemius aures?
    
quid miserum Thamyran picta tabella iuvat?
At quae non tacita formavi gaudia mente!
    quos ego non finxi disposuique modos!
nostra tamen iacuere velut praemortua membra
    turpiter hesterna languidiora rosa — 
quae nunc, ecce, vigent intempestiva valentque,
    nunc opus exposcunt militiamque suam.
quin istic pudibunda iaces, pars pessima nostri?
    sic sum pollicitis captus et ante tuis.
tu dominum fallis; per te deprensus inermis
    tristia cum magno damna pudore tuli.
Hanc etiam non est mea dedignata puella
    molliter admota sollicitare manu;
sed postquam nullas consurgere posse per artes
    inmemoremque sui procubuisse videt,
'quid me ludis?' ait, 'quis te, male sane, iubebat
    invitum nostro ponere membra toro? 
aut te traiectis Aeaea venefica lanis
    devovet, aut alio lassus amore venis.'
nec mora, desiluit tunica velata soluta — 
    et decuit nudos proripuisse pedes! — 
neve suae possent intactam scire ministrae,
    dedecus hoc sumpta dissimulavit aqua.




Não é muito formosa, nem o corpo traz com arte embelezado;
nem creio que espertasse em mim por possui-la íntimo anseio.
Mas tive-a nos braços... Só que (tão murcho estava!) para nada:
no leito preguiçoso, jazi, qual peso morto, envergonhado.
Não pude, desejoso, e com desejo igual da parte dela,
gozar do amável órgão que tenho entre as virilhas... mas sem força.
Bem se esforçou a bela, meu pescoço envolvendo com seus bracos, 
uns braços de marfim, mais cândidos que a neve de Sitónia;
depois com ardentes beijos, co’a minha ávida língua pelejou;
lasciva, a sua coxa por sob a minha coxa deslizava;
e disse-me ternuras, e, como escrava, dono me chamou:
enfim, o que é costume dizer-se em tais momentos de prazer.
Foi tudo em vão; a verga, de gélida cicuta possuída (*),
inerte persistiu, apática aos esforços da mulher;
um tronco sem acção, estátua, peso inútil parecia;
difícil de dizer, se corpo ou sombra era o que eu estava.
Nos anos da velhice, se acaso lá chegar, como será,
se agora a juventude os seus deveres próprios já não cumpre?
Da idade me envergonho, pois sendo ainda novo e sendo homem,
de novo ou de viril em mim nada encontrou a minha amante.
Assim, Vestal eterna, que à sua guarda tem as pias chamas,
o leito abandonou, tal recatada irmã, que o irmão respeita.
Co’a loira Clide, há pouco, dois prélios travei continuados,
e três co’a branca Pito, e outros três com Líbade travei;
e vem-me ao pensamento aquela curta noite em que Corina,
à luta me incitando, o ataque sustentou por nove vezes.
Será que este meu corpo é presa de tessálico veneno?
Será que — desgraçado! — sou vítima de encanto ou dalgum filtro?
Ou bruxa me rogou, em tábua encerada, alguma praga,
ou com finas agulhas meu fígado teria perfurado?
Com tais encantamentos, se viu Ceres tomada em seca erva;
com tais encantamentos, as águas na nascente se secaram;
por artes de magia, a glande do carvalho se desprende
e a uva da videira; enfim, sem que o sacudam, qualquer fruto.
Não poderá meus nervos a arte da magia entorpecer?
Sim, creio que foi ela, que frígido tornou todo o meu corpo;
também certo pudor — pudor que a actos tais não aproveita —
a tudo se juntou e foi segunda causa do insucesso.
Seu belo corpo vi, seu corpo com meus dedos afaguei,
qual túnica que toca, sem nada de permeio, sua pele.
Àquele toque só, Netor recobraria a juventude,
Titon a fortaleza, mais do que sua idade prometera.
Mulher, o sexo dá, a quem virilidade não demonstra.
Pra quê fazer mais preces, pra quê novos amores pretender?
Sem dúvida que os deuses, do dom liberalmente concedido
o uso torpe vendo, arrependidos já, outro não dão.
Queria ardentemente em sua casa entrar: fui recebido;
beijá-la: pois beijei; unir seu corpo ao meu: unido esteve.
Pra quê tanta ventura? Pra quê um reino ter, sem o proveito?
Pra quê, se, qual avaro, dos bens que tinha à mão não desfrutei? 
Assim sedento está, cercado de água, Tântalo indiscreto,
e pomos tem bem perto, que nunca com seus dedos tocará;
assim pela manhã, da tenra esposa o homem se despede,
podendo santamente o altar dos santos deuses demandar.
E chego a acreditar na falta de ternura ou de calor
dos beijos que me deu; não me excitou talvez como sabia:
quisesse ela esforçar-se, carvalhos graves, diamantes duros,
ou rochas insensiveis — a todos animara com ternuras;
estímulo daria a tudo o que animado ou homem fosse.
Porém, quem estava ali não era nem ser vivo nem um macho.
Que gozo dar pudera a orelhas surdas Fémio com seu canto?
Que gozo dar pudera a mais bela pintura ao pobre Tâmiras?(**)
E eu que imaginara, no íntimo do peito, mil volúpias!
Na minha fantasia, oh! quantas posições não ensaiei!
Porém, este meu membro, bem morto antes de tempo, ali jazia 
(vergonha das vergonhas!), qual rosa que na véspera colheram.
Mas ei-lo que se entesa (agora, intempestivo!) e ganha vida;
agora se propõe fazer sua função e sua guerra.
Ó parte vil de mim! Se tens pudor, persiste aí deitada,
pois já com tais promessas por ti fui uma vez bem intrujado.
A amante me iludiste; por tua causa, vendo-me sem arma,
sofri dano cruel, de mui grande vergonha acrescentado.
Além de tudo o mais, indigno não achou a minha amante
carícias fazer-lhe, co’a delicada mão, suavemente.
Mas vendo que era vã a arte consumida em levantá-lo,
e vendo que o meu órgào da sua serventia se esquecera,
exclama-me: “lnsensato! Pra quê troçar de mim? Quem te obrigava
a vir, contra vontade, teu corpo reclinar em minha cama?
Será que bruxa de Ea, co’a agulha entrelaçando fios de lã,
te traz enfeitiçado? Ou vens, cansado já, doutra aventura?”
E nisto, 0 leito deixa, da túnica ondulante se cobrindo
(e até seus pés descalços, na fuga, lhe acrescentam mil encantos!).
E por que não soubessem as servas que dali saía intacta,
mandando trazer água, assim tamanha ofensa dissimula (***)



(*) A cicuta era uma planta donde se extraía um veneno mortal:
o corpo começava a arrefecer, de baixo para cima.

(*) Tämiras era cego (V. Propércio, II, 22, nota ***).

(***) Quer dizer: lava-se... como se fosse preciso.



                                              II, IV

Non ego mendosos ausim defendere mores
    falsaque pro vitiis arma movere meis.
confiteor—siquid prodest delicta fateri;
    in mea nunc demens crimina fassus eo.
odi, nec possum, cupiens, non esse quod odi;
    heu, quam quae studeas ponere ferre grave est!
Nam desunt vires ad me mihi iusque regendum;
    auferor ut rapida concita puppis aqua.
non est certa meos quae forma invitet amores—
    centum sunt causae, cur ego semper amem.
sive aliqua est oculos in humum deiecta modestos,
    uror, et insidiae sunt pudor ille meae;
sive procax aliqua est, capior, quia rustica non est,
    spemque dat in molli mobilis esse toro.
aspera si visa est rigidasque imitata Sabinas,
    velle, sed ex alto dissimulare puto.
sive es docta, places raras dotata per artes;
    sive rudis, placita es simplicitate tua.
est, quae Callimachi prae nostris rustica dicat
    carmina—cui placeo, protinus ipsa placet.
est etiam, quae me vatem et mea carmina culpet—
    culpantis cupiam sustinuisse femur.
molliter incedit—motu capit; altera dura est—
    at poterit tacto mollior esse viro.
haec quia dulce canit flectitque facillima vocem,
    oscula cantanti rapta dedisse velim; 
haec querulas habili percurrit pollice chordas—
    tam doctas quis non possit amare manus?
illa placet gestu numerosaque bracchia ducit
    et tenerum molli torquet ab arte latus—
ut taceam de me, qui causa tangor ab omni,
    illic Hippolytum pone, Priapus erit!
tu, quia tam longa es, veteres heroidas aequas
    et potes in toto multa iacere toro.
haec habilis brevitate sua est. corrumpor utraque;
    conveniunt voto longa brevisque meo.
non est culta—subit, quid cultae accedere possit;
    ornata est—dotes exhibet ipsa suas.
candida me capiet, capiet me flava puella,
    est etiam in fusco grata colore Venus.
seu pendent nivea pulli cervice capilli,
    Leda fuit nigra conspicienda coma;
seu flavent, placuit croceis Aurora capillis.
    omnibus historiis se meus aptat amor.
me nova sollicitat, me tangit serior aetas;
    haec melior, specie corporis illa placet.
Denique quas tota quisquam probet urbe puellas,
    noster in has omnis ambitiosus amor.



Não quero desculpar-me da vida dissoluta a que me voto,
nem falsos argumentos invoco, que atenuem os meus vícios. 
Confesso os meus pecados, se acaso me aproveita a confissão.
E pois que confessei, proponho-me contar meus desvarios.
Meus erros odiando, c’os odiados erros me comprazo.
Como é penosa a carga — ainda mais, se quero sacudi-la!
Mas já me desfalecem as forças e o poder de dominar-me:
sacodem-me as paixões; qual barca, ando das ondas ao sabor.
De estímulo me serve toda e qualquer beldade, sem excepção;
sem conto são as causas que tornam minha alma enamorada:
se vejo uma mulher de olhar posto no chão pejadamente,
meu peito se incendeia, e já de seu pudor cativo fico;
estoutra, provocante, por rústica não ser também me prende
e dá-me forte esperança de ser viva e mexida em fofo leito;
da outra o ar feroz, as rígidas Sabinas semelhando,
sintoma é de desejos no íntimo do peito bem guardados;
se acaso és cultivada, engenho teu raríssimo me agrada;
se és rude e sem cultura, simpleza é uma virtude que me atrai;
é rústico — diz outra — Calímaco comigo comparado:
se a esta sou jucundo, razão de sobra tenho pra que a ame;
critica-me aqueloutra meus versos e minha arte asperamente:
mau grado tal censura, montar-me em suas coxas desejara;
um andar efeminado não deixa de agradar-me; um outro, duro, 
talvez possa abrandar, se um macho lhe impuser seu forte jugo; 
daquela o doce canto e os tons da voz sem esforço modelados
me incitam a roubar aos lábios seus cantantes ternos beijos;
plas cordas gemebundas estoutra os dedos passa saltitantes:
quem há que amar não possa assim tão hábeis mãos perdidamente?
Daquela os movimentos, dos braços a cadência, me deslumbram:
bandeia a tenra anca, aos sons da arte doce respondendo:
(De mim não falo já, que a mínima razão faz inflamar.)
Hipólito ali ponde: Hipólito não é, mas sim Príapo; (*)
e a ti, que és tao comprida, às velhas heroinas te comparo:
teu corpo assim tão longo toda a extensão do leito ocupará;
mas esta é pequenina — Por esta ou por aquela me enamoro:
a grande e a pequena despertam-me o desejo por igual;
não cuida esta de si? Com tratamentos fora mais formosa;
e aquela vem composta? Aos olhos meus exibe seus encantos;
se é alva, me cativa; cativa-me igualmente se for loira;
e até se for trigueira, não deixa, fosca Vénus, de agradar-me;
se, escuros, seus cabelos escorrem dum pescoço alvo de neve,
de Leda me recordo, que negra cabeleira embelezava;
se vejo uma outra loira, cabelos loiros tem a bela Aurora:
assim, o meu amor encontra sempre par na antiga lenda;
se é nova me desperta; mas se é madura já, também me toca:
daquela o aspecto vence, mas esta tem por si sabedoria.
Enfim, se em toda a Urbe há sempre um amador desta ou daquela,
por todas me enamoro — que todas sem excepção meu peito inflamam.


(*) Hipólito é o mais celebrado símbolo de castidade; quanto a Príapo, ver, nesta mesma edição, os Carmina Priapea e respectiva introdução.


Tradução de Custódio Magueijo em 
Antologia de poesia latina, erótica e satírica, por um grupo de docentes da Faculdade de Letras de Lisboa. Fernando Ribeiro de Mello – Edições Afrodite, Lisboa, 1975


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