terça-feira, 1 de abril de 2014

Arte Poética, de Horácio




EPISTOLARUM - Liber alter
 I

Agricolae prisci, fortes paruoque beati,
condita post frumenta leuantes tempore festo               
corpus et ipsum animum spe finis dura ferentem,
cum sociis operum pueris et coniuge fida
Tellurem porco, Siluanum lacte piabant,
floribus et uino Genium memorem breuis aeui.
Fescennina per hunc inuenta licentia morem               
uersibus alternis opprobria rustica fudit,
libertasque recurrentis accepta per annos
lusit amabiliter, donec iam saeuos apertam
in rabiem coepit uerti iocus et per honestas
ire domos impune minax. Doluere cruento               
dente lacessiti, fuit intactis quoque cura
condicione super communi; quin etiam lex
poenaque lata, malo quae nollet carmine quemquam
describi; uertere modum, formidine fustis
ad bene dicendum delectandumque redacti.               
Graecia capta ferum uictorem cepit et artes
intulit agresti Latio; sic horridus ille
defluxit numerus Saturnius, et graue uirus
munditiae pepulere; sed in longum tamen aeuum
manserunt hodieque manent uestigia ruris.               
 Serus enim Graecis admouit acumina chartis
et post Punica bella quietus quaerere coepit,
quid Sophocles et Thespis et Aeschylos utile ferrent.
Temptauit quoque rem si digne uertere posset,
et placuit sibi, natura sublimis et acer;           
nam spirat tragicum satis et feliciter audet,
sed turpem putat inscite metuitque lituram.


Os antigos lavradores, rijos e contentes com pouco, depois de armazenarem os cereais, nos dias de festa aliviavam o cansaço do corpo e mesmo o espírito que se aguentara na esperança de ver um fim a tanto esforço, e era então, com os companheiros de trabalho, com os filhos moços e esposa fiel, que à deusa Terra, um porco sacrificavam, ofereciam a Silvano, leite, e flores e vinho ao Génio que esta consciente da brevidade da vida. Por meio desta cerimónia é que foi inventada a licenciosa poesia Fescenina, que espalha, em versos alternados, sarcasmos rústicos, e essa liberdade que se repetia foi bem aceite durante anos, pois brincava com simpatia, até que, já aberta ao rancor, principiou a transformar-se com remoques cruéis e, ameaçadora, foi passear-se impunemente por famílias honestas. Feridos pelo seu dente sanguinário, queixaram-se os atingidos, e mesmo os que o não tinham sido também se sentiram tocados pela preocupação geral, e daí aparecerem uma lei e um castigo, que não permitia que alguém fosse molestado por versos maldosos. Mudaram os poetas de maneiras, com medo das pauladas, e tiveram de recuar, escrevendo bem e dando prazer. Conquistada a Grécia, conquistou esta o seu feroz vencedor e levou as artes para o grosseiro Lácio. Assim se escoou aquele horrível verso satúrnio (*) e a limpeza varreu a pesada infecção, mas por muito tempo ali ficaram e ainda hoje existem vestígios da rusticidade. Já tarde, depois das guerras com os Cartagineses é que começou a ter tempo e a ver já tranquilo, o que Sófocles, Téspis e Esquilo lhe podiam oferecer de útil. Também tentou ver se conseguia decentemente adaptá-los, o que lhe agradou, sendo, por natureza, de alta craveira e vigoroso. Tem de facto inspiração trágica e atreve-se com habilidade, mas sem jeito, e julga vergonhosa qualquer emenda e dela tem medo.

(*) É um metro primitivo de que se serviu Lívio Andronico para traduzir Homero, e que pode ser apreciado na citada obra de Warmington, vol. II, pp. 1-43.


De Horácio, Arte Poética, Introdução, tradução e comentário de R.M. Rosado Fernandes, 4.ª Edição revista e aumentada, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, ISBN 978-972-31-1444-7

Sem comentários:

Enviar um comentário