1.ª parte
Descrição do funeral, que João Xavier de Matos tanto profetiza nas suas rimas, alinhavado nas cláusulas deste
Soneto XXX
Que diabo de choro, ou que lamento
De brejeiros irá por essa rua?
Algum poeta deu a ossada nua,
Que a dar ais vão as Musas cento a cento:
De quem será o embrulho verolento,
Que tão pobre caminha à terra crua,
Envolto numa esteira de tábua,
Sem caldeira, sem cruz, sem um Memento?
Quem será este herói, que já nos foge
Dos Deuses para aquela convivência,
Que dos Bragas (*) excede a fresca loje?
“Quem será (diz Apolo) oh dura ausência!
É João Xavier, que morreu hoje,
Abraçado co’a sua paciência.”
(*) Armazém de vinhos, que há no Rossio, e de que ele é freguês.
Pag. 30
Parodiando o soneto em que João Xavier de Matos descreve o templo d’Amor.
No templo entrei d’Amor e inda gelado. (Tom. 1.º, pag. 70)
Soneto XXXI
Fui uma vez d’Amor à sacristia,
Que era um quarto int’rior do Talaveiras,
E vi trinta milhões d’alcoviteiras,
Inculcando a safada putaria:
De chichisbéus a tropa ali se via
Encrespando os anéis das cabeleiras,
E descendo-lhe o vinho às algibeiras
Davam cada facada, que estrugia:
O manso corno então se vai embora,
D’albarda o chichisbéu vi, que trabalha
Por servir como burro a uma senhora:
No tecto estava Amor d’escudo e malha,
Com seis vinténs na mão, e a pica fora
Mijando em toda aquela vil canalha.
Pag. 31
Ao Marquês de Pombal quando destituído dos seus cargos, e mandado para a sua casa do Pombal.
Soneto XXXII
Que desonrem os régios tribunais
Do Pele os sanguinários carniceiros;
Que sejam contadores, tesoureiros
Os que foram nos furtos parciais:
Que estraguem os alheios cabedais
Deputados ladrões! Que maus canteiros
Se digam arquitectos que os Monteiros
Grão-sultões edifiquem capitais:
Que o Manopla organista, algoz Manique,
Que da sizânia o espalhador Pereira
A agravada justiça não despique:
Que o capitão do bando ao erguer da feira
Rindo-se da galhofa em Pombal fique,
Pode bem suceder; mas não me cheira!
Pag. 32
Na mesma ocasião
Soneto XXXIII
Que tirasse o Marquês com mão avara
Do erário d’el-rei o metal louro;
Que ajuntasse um riquíssimo tesouro,
Sem inveja de lhe ter, eu desculpara:
A sede insaciável se fartara
No contrato dos vinhos do Alto-Douro,
Se roubasse ao judeu, ao índio, ao mouro,
E ao rico holandês, não criminara:
Mas o que não consinto, nem aprovo
É da sua ambição dar-nos assunto,
Assunto nunca visto, assunto novo:
Pois não contente do que tinha junto,
Até tirou as lágrimas ao povo
Com que chorar devia o rei defunto!
Pag. 33
Ao mesmo jarreta do Diabo, encaixotado no Pombal, com dinheiro em barda
Soneto XXXVI
Sim senhores, tem feito maravilhas,
Vai purgando o Marquês o seu pecado;
E na apreensão do vulgo amaldiçoado
Todos estes trovões são cascarrilhas:
Tiraram os Mendonças co’os Mansilhas,
Este da feitoria, o outro do prado;
Nem o estrondoso herói já tem ao lado
Mais que a pobre mulher, e uma das filhas:
A santa imagem de pavor profundo
Três vezes foi borrada, insulto aquele
Que a história nunca deu a ler segundo:
Mas eu trocara co’o Marquês a pele,
Pois quanto dinheirinho há neste mundo
Todo jaz no Pombal nas garras dele.
Pag. 36
Na morte do Marquês de Pombal em 1782
Soneto XXXVII
Apesar dos esforços, que fazia
Por dilatar a vida sempre astuto,
O Marquês de Pombal paga o tributo,
Que desde que nasceu pagar devia:
Na duração eterno parecia,
E o mundo para ele diminuto:
Se ele foi bom, ou mau, não o disputo,
Que isto toca a mais alta jerarquia:
Sei que mostrou, que todo aquele enredo
De máximas, ideias, vigor forte,
Acaba de uma vez, ou tarde ou cedo:
Restam hoje as exéquias desta morte;
E para pregar nelas o Macedo
Que está pronto a mentir de toda a sorte.
Pag. 37
Antiguidade da Chanfana
Sonet LII
Depois que ao som do berço me cantava
Velha enrugada modas bolorentas,
A voz soltando pelas sujas ventas,
Qu’em vez de sono medo me causava:
Depois que para a escola eu só andava
Expondo-me do mundo a mil tormentas,
E minha avó nas contas já sebentas
Para que eu fosse bom sempre rezava:
Vi até agora em portas de baiuca
Bofes, pimentos, alhos e cebolas
Em caçoila fervendo já caduca:
Este guisado, pois, de corriolas
A tal chanfana ser ninguém retruca,
Petisco de malsins, de mariolas.
Pag. 52
Descrição da Chanfana
Soneto LIII
Em pequenas barracas de madeira
No campo do curral vejo espichado
Em torto prego o bofe ensanguentado
De velho boi, já cheio de lazeira:
Ali de Isidro, Almeida, Talaveira (*)
E de outros tais, a quem ergueu o fado,
Todo o negócio foi principiado
Por indigesta gorda forçureira:
Ali de bodegões bando infinito
O seu tassalhão compram de semana,
Que descalços à porta vendem frito:
A qualquer que ali passa o cheiro engana:
Gasta os seus cobres, e depois aflito
A vómitos conhece o que é chanfana.
(*) Casas de pasto mui nomeadas em Lisboa.
Pag. 53
À tormenta de peles, que caiu em Lisboa por toda a casta de corpo, no ano de 1764.
Soneto LXVI
Arre com tanta pele grossa e fina,
Branca e preta, de toda a variedade!
Dar-se-á caso que tal monstruosidade
De ratazanas fosse alguma mina?
Onde irá isto dar? Ninguém atina
Se há mudança na gente, ou na cidade;
Porque a terra pertence à cristandade,
Mas o traje é sujeito à Palestina:
Quem me dera ver lá para o estio
Se de peles de lixa, ou de sardoa
Aparece algum traste no Rossio?
Pobres ratos, pregaram-vo-la boa!
Que em Londres e Paris andais ao frio,
Por cobrir os peraltas de Lisboa!
Pag. 66
Aos filósofos de caldo de unto e broa, que saíram da Inquisição em 1778.
Soneto LXVII
Que sectários nutrisse a antiga Roma,
Verdugos capitais da tenra Igreja;
Que enxugue Londres rios de cerveja,
Que venda o bacalhau, que a carne coma:
Que um sepulcro flamante ao seu Mafoma
Façam turcos, e mouros, vá que seja;
Tem Turquia algodão, que lhe sobeja,
Cera a Mourama, que isso não tem soma:
Mas que de Portugal livres-pedreiros,
Que à fé cristã abrissem o jazigo
No sórdido país dos sardinheiros!
É caso raro: cheguem-se ao castigo,
Que a maior pena para os tais broeiros
Era obrigá-los a comerem trigo.
Pag. 67
Refere-se a militares do Regimento de Artilharia do Porto e outras pessoas de Valença do Minho, que foram presos por ideias liberais em 1778 pela Inquisição de Coimbra, sendo Inquisidor-Geral o Cardeal da Cunha:
Miguel de Kinselach Crochan, Sargento-mor, natural de Bruxelas – Pr. N.º 8089
Aleixo Vachi, cirurgião-mor, natural de Liers-França – Pr. N.º 8078
José Leandro Meliani da Cruz, tenente, natural de Lisboa – Pr. N.º 8081
José Anastácio da Cunha, tenente e lente de geometria na Universidade de Coimbra – Pr. N.º 8087
José Barreto, cadete, natural de Valença – Pr. N.º 7265
Henrique Leitão de Sousa, cadete, natural de Penamacor – Pr. N.º 8075
Manuel do Espírito Santo Limpo, cabo de esquadra, natural de Olivença, Pr. N.º 8077
João Manuel d’Abreu, soldado, natural de Olivença – Pr. N.º 8076
José de Sousa, soldado, natural de S. Jorge de Cima de Selho - Guimarães – Pr. N.º 8085
José Maria Teixeira, estudante do 5.º ano de Cânones, natural de Valença – Pr. N.º 8084
Foram condenados ao confisco dos seus bens, perda dos seus postos e reclusão em diversas casas religiosas, para aí serem instruídos na fé, deportando-os em seguida para Viseu, Lamego, Évora, etc., sendo-lhes proibido voltar a Valença ou a Coimbra, enquanto vivessem. O último foi castigado mais severamente, com a penas de açoites e cinco anos de galés.
Ao Cavaleiro do Acaso, denominado negociante, expulso da Companhia dos Vinhos pelas suas lindas obras, e cujo avô foi sapateiro.
Soneto LXXIV
Co’um penedo ao pescoço pendurado
Lá vai um dar co’os ossos na Ribeira,
Sem bastão, sem chapéu, sem cabeleira,
A morrer pelos vinhos afogado:
Torna atrás, Manuel, olha que irado
Acheronte já vem d’alta vizeira,
Conduzir-te no barco da carreira
Para seres no inferno ex-deputado!
“Sim senhor (acenando co’a cabeça
Diz o bêbado) abraço este conselho,
Porque enfim variei com a tal peça:
São Crispim, tendes um frontal vermelho,
Se me pondes de assento na tripeça
Que foi timbre das armas do meu velho!”
Pag. 74
Lamenta o Autor os costumes do seu tempo
Soneto LXXV
Acabou de Lisboa a seriedade,
Já não há nas mulheres honra e brio,
Os peraltas com feio desvario
Têm feito escandalosa esta cidade:
Do negócio, faltou a sã verdade;
O recato se vê campo baldio;
A santa religião pende dum fio,
Pois se nega da pena a eternidade:
As praças se vêem hoje frequentadas
De damas, que nas culpas são primeiras,
Pelos braços dos homens enlaçadas:
Para isto se roubam as algibeiras,
E só são qualidades estimadas
Cornos, putas, ladrões, e alcoviteiras.
Pag. 75
Aos MM. RR. PP. Pinadores deste reino e seus domínios, a quem a Rainha não permite pernoitar em casa dos seus benfeitores
Soneto CIV
Meus Carambas, bem sei que é coisa dura
Ouvir a fatal carta da Rainha,
Que bem declara como quem advinha
Quanto vai dum alcouce a uma clausura:
Vocês não podem ir à noite escura
Nem à moça falar, nem à alcofinha,
Sem que os ande a espreitar qualquer vizinha,
Que se a moca entender, temos diabrura:
Forte zanga foi esta, e inda mais digo.
Que já o mundo todo observa atento
Onde os gordos bureis têm seu jazigo:
Mas vocês lá dirão: “Irra convento,
Essa carta não joga cá comigo,
Que eu tenho um breve de hábito retento”.
Pag. 104
Na mesma ocasião, apresenta um pobre clérigo desempregado o seguinte requerimento, em que pede ser acomodado.
Soneto CV
Diz um clérigo pobre, mas honrado,
Assistente nas casas onde mora,
Que ele pode servir qualquer senhora
Em tudo quanto for do seu agrado;
E porque sabe que se tem mandado
Recolher aos conventos sem demora
Os frades, que viviam cá por fora
Esquecidos do claustro professado:
Pede o suplicante por piedade,
Ver se alguma senhora o quereria
Por capelão, na falta de algum frade:
Pois há-de achar na sua companhia
Quem lhe saiba fazer a caridade,
Melhor que qualquer frade lha faria.
Pag. 105
Na funesta ocasião em que a Zamperini, decaindo de fortuna, se mudou para umas casas na Cotovia, um pouco baratas.
Soneto CXXVIII
Qual homem de negócio, que afrouxando
Do tesão em que o pôs alta ventura,
Um ano antes da infausta quebradura
Vai os gastos caseiros encurtando:
Que devoto na igreja está lançando
Água benta do pai na sepultura,
E a qualquer charlatão um dia atura,
À estação do comércio lamentando:
Assim a Zamperina hoje se estreita
A comer pão de rala, e a voz commua
Diz, que ouve missa com tenção perfeita:
Já zombam dela a Bárbara e a palûa;
E se a fortuna não correr direita,
Daqui a um mês vem para a minha rua (*).
(*) Morava então na travessa do Pasteleiro
Pag. 128
Ao Abade de Jazente, Paulino Cabral de Vasconcellos.
Soneto CXXIX
Quis Paulino ostentar de cristandade,
Co’a careca do tempo à inclemência;
Porém esta excessiva reverência
Envolve circunstâncias de vaidade:
Lembrou-se que em cabelos noutra idade
Com Absalão tivera competência;
E que faz?, vendo a calva na decadência?
Pede a Deus lhe reforme a enormidade;
Tirou do soli-déo; e indo a erguê-lo
A peruca descobre o casco liso,
Onde rastos não há nem d’um só pelo:
Mas o que sobre tudo move a riso,
É ver que só a Deus peça cabelo
Quem muito mais carece de juízo!
Pag. 129
Desforra do Abade, em resposta ao antecedente
Soneto CXXX
Oh, que rústico estás, monte Parnaso,
Feito pasto de Lobos! Quem dissera
Que uma tão atrevida e voraz fera
Teu alto cume havia deixar razo!
Da tua Cabalina não faz caso
Quem puro cisne dessas águas era;
Vendo ter-te ultrajado a clara esfera
Outro bruto, mais feio que o Pegaso:
A Castália está turva, o Pindo seco,
E até o mesmo Apolo erra o caminho,
Metendo-se na venda do Janeco!
Intratável estás, pobre e mesquinho;
Pois teus belos jardins são sujo beco,
E teus belos cristais botado vinho!
Pag. 130
Ao poeta Nicolau Tolentino, que sonhou estar elevado a oficial de secretaria.
Um homem tal e qual, um tal sujeito
Nicolau Tolentino sem mais nada,
Que com dispensa a veneranda espada
De São Tiago traz no inchado peito:
Sonhou que oficial estava feito
Duma secretaria, e nesta andada,
Que tinha sege, e moço na escada,
E um simples pano para a porta feito:
Lembrou-lhe o ás de copas por escudo,
Com outras cartas mais de corriola,
Armas próprias de seu tão grande estudo:
Eis que bate um rapaz na dura argola,
Acorda o Dom Quixote, foi-se tudo,
E fica, como dantes, mestre escola!
Pag. 131
Assistindo à Alleluia no convento dos Paulistas, festa a que concorre toda a sécia de Lisboa
Soneto CXLII
Nunca João Gomes pôs tão boas vistas
No teatro venal, que em paz descansa,
Como hoje estamos vendo em ar de dança
Na famosa Alleluia dos Paulistas!
Empreendendo de amor novas conquistas
Todo o frade machucho engrila a pansa;
Sobre quem há-de ter maior pitança
Embirrando um com outro joga as cristas:
Enquanto escuro faz namoro a faro;
Eis que as cortinas dando dois abanos
Caem por terra, e fica tudo claro:
Vê-se então a fraqueza dos humanos;
Grande ideia por certo! E só reparo
Não terem dado nela os Franciscanos!
Pag. 142
A um frade destes chamados Borras, que descompôs a sua mãe por lhe não dar o dinheiro que ele queria, para levar à sua menina.
Soneto CXLIII
“Ah que d’el-rei! Não há quem me socorra!
(Certo frade arreitado à mãe dizia)
“Valha-me a rua Suja, ou Cotovia,
Antes que mártir do tesão, eu morra!”
Larga a mãe um tostão ao frade borra,
Mas ele, que acha pouco, assim porfia:
“Veja lá, mãe, se acaso gramaria
Por tão pouco d’argent tão grande porra?
Fica a santa mulher toda aturdida,
Não tendo nunca visto, nem tocado
Porra tão grossa, porra tão comprida.
Que fará, vendo o filho em tal estado?
Apara papel, toma-lhe a medida,
Vai levar a bitola aos eu prelado.
Pag. 143
Contra o fanchonismo, que invadindo esta corte, ameaça convertê-la em outra nova Sodoma.
Soneto CLII
Das tartáreas masmorras o Diabo
Trouxe nos cornos a brutal punheta;
Jurando aniquilar com manha e treta
Delícias feminis, por quem me babo:
Corre Lisboa do princípio ao cabo;
Inspira em corja vil que esquive a greta,
Que ao gosto singular da mama e teta
Hoje a mão substitua, a bimba, o rabo:
Lavra o prazer bastardo; eis Madragoa,
Eis Taipas, Cotovia em abandono,
Rara pica nas bordas já se assôa:
E perdeu tanto a voga o pobre cono,
Que até certo taful viu em Lisboa
Um gato sodomita, um cão fanchono!
Pag. 152
Na ocasião em que se mandaram fechar os teatros, e se degradaram vários cómicos, por queixas de certas fidalgas, etc.
Soneto CLIII
Punhetas vis, que saciando as picas
De fanchonos crueis desenfreados,
Fizestes sobre enormes mil pecados
Que de fome estalassem tantas cricas:
Abrir mais não vereis as bolsas ricas,
Donde sacáveis sempre os bons cruzados,
Nem já vereis co’os dedos besuntados
O puro sémen a correr em bicas:
Recta justiça, que a ninguém perdoa,
Vos virou da fortuna a leve roda,
Este o pregão, que na cidade soa:
“Já dos fanchonos se acabou a moda,
Já lá vão os sacanas de Lisboa,
É mais cara a punheta do que a foda.”
Pag. 153
À moda das rendas largas, e toucados altos.
Soneto CLVIII
Graças ao céu! Como hoje resplandece
A virtude da santa honestidade!
Já o tempo chegou, chegou a idade
Que a filha de Sião tanto apetece!
Uma dama gentil, quando aparece,
É coberta com tanta gravidade,
Que a figura da santa Castidade
Não se pinta melhor, não se encarece.
As largas renda põr sobre o toucado,
A honesta cara ninguém pode vê-la;
Este santo viver é acertado:
O manto é compostura da donzela;
Mas se mostra o saiote arregaçado,
Liga, meia, e sapato, caguem nela.
Pag. 158
A estas minhas senhoras, que me aparecem com o lenço deitado sobre a volta da capa por amor do cieiro.
Soneto CLIX
Aquela moça, que estendeu primeiro
A toalhinha na capa, era meliante,
E deu a entender quando a pôs diante
Que era uma viva loja de barbeiro:
D’estanco de salão já foi roteiro,
Lenço branco na unha de estudante:
Mas hoje qualquer moça é traficante,
E a todo ofício quer ganhar dinheiro:
Perdeu-se o trato, da breca está levado,
Nem de ganho aqui há forma, ou matéria
Que as patifas não tenham esgotado:
Mas só estranho a alguma, que é mais séria,
Que indo às vezes co’o lenço bem lavado,
Ande sempre co’a fralda numa miséria!
Pag. 159
À Ana Couveira, passando rebuçada na renda do manto por diante do autor.
Soneto CLXII
Aquela renda, que dos olhos desce,
Até o embigo de uma moça ufana,
Uma mestra a inventou, mulher cigana,
D’obra prima a melhor que hoje floresce:
Ali quem move o pé não se conhece,
Um a tem por Anica, outro se engana,
E como a saia mostra ser campana,
Sacrossanta basílica parece.
Que faço eu? Com a matula fina
Vou vendo ao longe em ar de sentinela
A que beco a marota se destina:
Sacode o pé na escada a ninfa bela;
Sabido o caso, corre-se a cortina,
Sai de dentro a Couveira, caguei nela!
Pag. 162
Etimologia da palavra cagaçal, que se havia modernamente introduzido no regimento do Verde
Soneto CLXIII
Uma moça à janela (isto é verdade)
Em mangas de camisa, co’as guedelhas
Parte nos olhos, parte nas orelhas,
Pintada d’azarcão e de alvaiade:
Lavando à pressa a imunda porquidade
Dos lenços rotos, e das fitas velhas,
Ou pondo ao canto ali das sobrancelhas
Bolas de seda preta em quantidade:
Armada assim a infausta basilisca
Té que na mão a chelpa lhe não ruja
A quantos vão e vem acena, e pisca.
Pois eis aqui (quem há que lhe não fuja)
No sistema da tropa verderisca
O que é um cagaçal da rua Suja.
Pag. 163
A certas moças, que traziam engodados os basbaques, que por elas se deixavam cardar.
Soneto CLXVI
Há certas semi-putas nesta terra,
A quem ledos basbaques fazem tolas;
Que vivendo de ganchos e gaiolas,
Às honradas pretendem fazer guerra:
As Dauphnis (por exemplo) andam na berra
Entre quatro afectados mariolas,
Que espertas devem ser, mas são patolas,
Que a sagaz cambadinha em vida enterra.
Quem as vê lambisgoias, faladoras,
O chiste já sediço repetindo,
Se é bolonio, ele crê que são doutoras:
O laberco, porém, que está medindo
Quando dista de putas a senhoras,
Caga nelas, e deles se vai rindo.
Pag. 166
A certa moça, chamando velho ao autor, que ainda se não tinha por tal.
Soneto CLXVII
Não te escondo a guedelha encanecida,
Nem da rugosa fronte a cor já baça:
Conheço que o meu lustre, a minha graça
Foi por duros Janeiros destruída:
Confesso, inda que é já bem conhecida,
Que a idade minha dos cinquenta passa;
Mas juro que inda tenho grossa maça
Qual teso mastaréu a pino erguida:
Se és hidrópica mestra fodedora,
Daquelas, que procuram com trabalho
Lanzuda porra, porra aterradora;
Minhas cãs não te sirvam d’espantalho;
Põe à prova o teu cono, e sem demora
Verás então se é velho o meu caralho.
Pag. 167
A uma freira, que se fazia sangrar para lenitivo das comichões que sofria nos antípodas da boca.
Soneto CLXX
Põe-se a toalha, chega-se a bacia,
A lanceta na mão, pé n’água quente,
Assustado o barbeiro, e reverente
Para a freira voltado assim dizia:
“Se dá licença, vossa senhoria…
Pico?... “ – Sim, lhe diz ela, e tão valente
Que parecia só estar doente
Por pica lhe faltar naquele dia!
À sangria o barbeiro então se aplica,
E cuidando ao picar a freira morra,
Ela lhe diz valente: “Pica, pica:
E verás nesse sangue quando corra,
Que me fora melhor no que ele indica,
Se em lugar de lanceta fosse porra!”
Pag. 170
À Regente do recolhimento do Anjo na cidade do Porto, a mais endiabrada mulher que viram os nossos tempos.
Soneto CLXXI
Regente do Anjo mau, quão grã regente
Foras da Neta (*) a seres mais cachopa!
Vem reger, vem as súbditas da Estopa,
Que esse lugar aí não te é decente:
Deixa os tarecos a qualquer servente,
Sarilho e fuso, que isso em pouco topa:
E em chegando ao Arsenal com vento em popa
Que mais queres que estar co’a tua gente?
Que dilúvio de abraços! Que tormenta
De beijos não darão aquelas santas
Nessa tua boquinha fedorenta!
Oh não queiras tardar, que às tuas plantas
Só de putas aqui tens mais de oitenta;
Mas em tu vindo crescem outras tantas.
(*) A viela da Neta bairro das meretrizes.
Pag. 171
Soneto CLXXII
A um figurão mui putanheiro, que em prémio de suas laboriosas proezas teve a pica decepada
De foder sujos conos já cansado
De Almeida apodreceu o membro enorme;
Parou enfim a máquina triforme,
Que tinha imensas cricas arrombado:
Soou por toda a parte o grosso brado
Do tremendo marzapo ingente, e informe;
Mas (desgraça cruel!) em cinzas dorme,
Por amolados ferros decotado:
A ver o triste funeral correram
Mais de mil putas, que ao fatal estrago
Cobrindo os olhos com as mãos gemeram:
Temei, casadas, o venal afago:
Olhai que vis michelas concorreram
Para ficar de Nise o cono vago.
Pag. 172
Certa mãe, irresoluta sobre o estado da filha, vai consultar o seu médico.
Soneto CLXXIII
Meu Doutor, que tem esta rapariga,
Que não é como dantes tão andeja!
Cospe, vomita, mil coisas deseja,
Nasce-lhe pano, cresce-lhe a barriga!
Parou-lhe de repente a cópia antiga
Do sangue, que por baixo se despeja;
Faz diligência que ninguém a veja,
E até se esconde da melhor amiga!
Dar-se-á caso que seja do demónio
Algum ardil, alguma trapalhada?
Se assim é, vou levá-la a santo António.
“Não, senhora, a menina não tem nada;
Os efeitos quis ver do matrimónio,
Para não estranhar, sendo casada.”
Pag. 173
À mesma
Soneto CLXXVIII
Ah! Quem me dera ao menos um milheiro
De porras de gigante para dar-te,
Para ver se podia assim fartar-te
Esse voraz faminto parrameiro!
Porém tu queres porras, e dinheiro,
Senão eu só podia contentar-te;
Diz-me, e pode a tença só chegar-te
Para comprar veludo um ano inteiro?
Dizem, que aos sodomitas lá no Averno
Põem os diabos sobre um alto trono,
Co’um caralho no cu de fogo eterno:
A ti hão-de também pregar-te o mono;
Ficarás nas profundas do inferno
Co’uma piça de riço nesse cono.
Pag. 178
A outra endiabrada freira do Porto, muito conhecida por suas laboriosas proezas
Soneto CLXXIX
"Olha, se eu fora a ti, minha Terência,
O meu quarto forrava d’embrechado,
De porras todo, que inda no pintado
Quisera-as ter à minha obediência:
De Martinho esculpira em toda a ardência
Por trás do leito o membro asselvajado,
E no tecto, com vulto desmarcado,
Trinta porras de burro em competência:
De caralhos meãos, e alguma pica
De rapaz, bastaria obra de um saco
Para algum vão, que no embrechado fica:
E entre os bilros do catre num buraco
Mandava pôr, para coçar a crica,
Um par de caralhinhos de macaco.
Pag. 179
A uma freira do convento de Santa Clara de Beja, por nome D. Eufrásia Margarida, e ao seu baboso e caconço namorado, o capitão Fernão Leite.
Soneto CLXXXIV
Em Beja, a dez de Abril, em Santa Clara,
A freira Dona Eufrásia Margarida
À mão do almofariz foi bem moída,
Ralada a bofetões a nedea cara:
O Adónis Fernão Leite, que escutara
Os ais que dava a sua mais querida,
Por despicá-la a espada traz despida,
Corre como leão, sendeiro pára:
Por erro o capitão se não despica,
Que o desafio as freiras receberam,
Se ele em vez de catana arvora a pica:
Eufrásia tal está qual a puseram;
Fernão parte, e o gazeteiro fica
Meditando as asneiras que se esperam.
Pag. 184
Diálogo entre um freguês e uma alcoviteira
Soneto CLXXXV
Truz-truz, truz-truz… Alc. “Q. é? Q. bate aí?”
Freg. Um homem que costuma bater lá;
Alc. Como são tantos os que batem cá,
Se não disser quem é, vá-se daí.
Freg. Pois tu não me conheces? “Alc. Nunca o vi,
Mas se quer dê uma volta, e tornará,
Que a senhora Teresa agora está
Com cinco ou seis a quem a porta abri.”
Freg. Com cinco ou seis? Forte cassão és tu!
E dizia que entrava eu aqui só!
Ah, puta, há-de levá-la Belzebu!...
Alc. Ah senhor, fale bem, e tenha dó!...
Freg. Eu cuido em lhe fazer em borra o cu,
Se tem lá quem lhe faça o cono em pó.
Pag. 185
A certa Messalina dos nossos tempos, a quem se pode aplicar o que Juvenal dizia da romana: “Lassata viris, nec dum satiata recessit.”
Soneto CLXXXVI
Essa altiva mulher, cara de borra,
Alta, magra, amarela, tola e feia,
Casada com um ourives que laureia,
Ténue dote comendo à tripa-forra:
Também ninguém duvida que lhe escorra
Pelas pemas humor de gonorreia;
É tão puta, que diz à boca cheia
Que jamais se acolheu farta de porra:
Se a não fartou do Braga um caralhote
De vinte, nem do Arrobas um caralho
Nem outras porras mil, todas de lote;
Como há-de saciá-la o seu paspalho,
Que tendo uma barriga como um pote,
Tem piça menor que um dente de alho?
Pag. 186
A certa moça da vida, que ao fim de vinte anos de ofício, dizia haver emprenhado
Soneto CLXXXVII
Vade retro, cassão, fúria malvada,
Puta já desde a criação do mundo,
Poço aonde ninguém encontra fundo,
Engana-se quem diz andas pejada:
Dizem, padeira, que por assoada,
Tens adornado o cono furibundo
Com sedas de cabrito, e lá no fundo
Uma pouca de lã mal tonsurada:
Iludes, puta mestra, a gente leiga,
Co’o volume, que trazes na barriga,
Prometendo futura prole meiga:
Não há tal, é mentira, e há quem diga
Que isso é uma barrica de manteiga,
Farpados restos da baiuca antiga.
Pag. 187
Ao Papa-castanhas, que tratando amores com uma freira de Sant’Ana, chamada D. Maria das Fanhas, e tendo esta apetite de comer sardinhas, ele lhe mandou meio cento.
Soneto CXCII
Que é isto, ó santidade das alcunhas?
Vomite versos quem comeu castanhas:
Mas se as que o burro caga são tamanhas
Nessas só filarás também as unhas.
Escreveste em romance garafunhas
Afinando a digníssima dos Fanhas;
Que a vozes te saíam das entranhas,
Sendo o Rufo, e o Taranta testemunhas.
Não faças versos, faz carantonhas,
Quando vês umas pernas como linhas,
E um cono, que tem lã para três fronhas:
Às freiras faz bem, Juan de las vinhas,
Porque quando te mostram as vergonhas
Lhes mandas meio cento de sardinhas.
Pag. 192
Resposta em nome do Papa-castanhas pelos mesmos consoantes.
Soneto CXCIII
Venha cá, sacatrapo das alcunhas,
Eu sou cão lambareiro das castanhas?
Para as que o burro caga assim tamanhas
Não tenho eu dentes, mas você tem unhas.
Que lhe importam as minhas garafunhas?
O que tem co’a digníssima dos Fanhas?
Deixe arreitar, não tenha más entranhas,
Que lh’o hei-de provar com testemunhas.
Se mostro a porra e faço carantonhas,
Se vejo o cono, e pernas como linha:
Por isso largo lã para três fronhas.
Porque tratando as freiras como vinhas,
O que delas vindimo são vergonhas,
O que gasto com elas são sardinhas.
Pag. 193
MOTE
Tem quatro dentes de mais.
Décima VIII
Toda a pinatriz canalha
Que por ofício namora,
E quer saber onde mora
A Jerónima Borralha:
Lá na rua se agasalha
Dos Mastros, bem junto ao cais;
Procure co’estes sinais
A moça dos pés pequenos,
Que tendo o virgo de menos
Tem quatro dentes de mais.
Pag. 208
MOTE
Amor, constância e fé pura.
Décima IX
Naqueles tempos dourados
Que a barba não se cortava,
E um cabelo se empenhava
Por quarenta mil cruzados:
Havia peitos honrados,
Cheios de fé, e lisura;
Mas hoje por desventura
Entre a nobreza, entre o povo,
Combate um cruzado novo
Amor, constância e fé pura.
Pag. 209
Todos os poemas de "Poesias joviaes e satyricas", Cadix (falso! Foi impresso em Lisboa), 1852, 231 pgs.
Mais poesias em
http://torrecanina.blogspot.com/2006/09/antologia-do-lobo.html
BIBLIOGRAFIA
Poesias joviaes e satyricas de Antonio Lobo de Carvalho.
Online: http://purl.pt/16606
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
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